História real
Dira Paes filma a luta de uma guerreira contra o trabalho escravo no Brasil
Dira Paes interpreta no cinema mãe que luta contra o trabalho escravo.
Atriz desde os 16 anos – estreou como índia em A Floresta das Esmeraldas, de John Boorman, de 1985 –, a paraense Dira Paes foi, durante muito tempo, um biscoito fino apreciado somente pelo público de cinema. Participou de filmes importantes, grangeou respeito e admiração. A popularidade veio com a televisão, primeiro como A Diarista e, depois, com sua participação em Amores Roubados. Aos 45 anos, chegou até a entrar na mirar da Playboy, tudo por conta de suas cenas de nudez na minissérie. Declinou. “Como atriz eu tenho facilidade e me sinto à vontade com a nudez. Fora das personagens, não.”
Aos 49, Dira não se importa de sacrificar a beleza por um novo papel. A personagem vale a pena. Em Pureza, que conclui atualmente no Distrito Federal, sob a direção de Renato Barbieri, ela interpreta uma personagem real, Pureza Lopes Loyola. Como integrante da ONG Movimento Direitos, Dira já a conhecia. “Sabia da sua importância e até que ela havia recebido um prêmio internacional da área de direitos humanos, o Nobel do setor. Mas interpretar essa mulher me deu outra vivência. Pureza saiu por esse Brasil atrás do filho, Abel. Ele saiu de casa atrás de emprego, e nunca mais deu notícia. Pureza seguiu sua trilha, trabalhou numa fazenda como cozinheira e descobriu o trabalho escravo. Conseguiu documentá-lo e dessa forma, com o apoio da Pastoral da Terra, libertou centenas de homens e mulheres que trabalhavam em condições desumanas no interior do Pará. Acho fundamental que o cinema conte essas histórias. O Brasil precisa saber tudo o que ocorre nessa imensidão e faz a fortuna de poucos”, diz a atriz.
Para viver essa guerreira de 52 anos, Dira não se importou de sacrificar a própria beleza. São apenas três anos de diferença, mas vai uma distância enorme entre a mulher urbana, tratada, e a outra sacrificada no sol da estrada e da labuta sofrida. Dira conta que fica quase todo o dia na pele de Pureza, caracterizada como ela. “Isso não significa apenas o figurino, mas também escurecer a pele, criar manchas. Já tenho a tez morena, mas o sol amazônico pode ser inclemente. Para dar veracidade à Pureza da tela era preciso construir a personagem no plano do físico. Parei de me depilar, tudo para servir à personagem. Mas isso é só a exterioridade. Eu ainda tenho de dar conta da sua emoção, da sua disposição, da sua luta.”
A própria Dira dirige a ONG Movimento Direitos Humanos, formada por artistas para defender causas sociais e ambientais. Trabalho escravo, prostituição infantil e demarcação de terras indígenas são prioridades nessa luta. O repórter lembra um clássico de Roberto Farias, cineasta que morreu há pouco. Todo mundo conhece os filmes de Farias com Roberto Carlos, e também Assalto ao Trem Pagador e Pra Frente, Brasil. Mas poucos conhecem a verdadeira obraprima do direito – Selva Trágica, de 1964, adaptado do romance de Hernani Donato, com Reginaldo Faria e Rejane Medeiros. O filme se passa na fronteira paraguaia, na região de cultivo de mate, onde homens endividados são forçados a trabalhar como animais – a cena em que Reginaldo tenta levantar a carga muito superior a suas forças – e as mulheres são obrigadas a se prostituir. Dira admite desconhecer o filme de Roberto Farias, mas vai tratar de procurá-lo. “Vai ser muito útil na nossa ONG”, reflete a atriz.
Dira Paes reconhece que se jogou no papel de Pureza Lopes Loyola, e que procurou ir fundo na vida sofrida dessa mulher. “Sou mãe e entendo a luta dela em busca do filho. Por conta da profissão, eu, às vezes, tenho de me afastar deles, mas procuro compensar. Agora mesmo, aproveitando o período de férias escolares, eles estão comigo (aqui) no set de Pureza.” Dira se refere aos filhos Inácio e Martim, de sua união com o diretor de fotografia Pablo Baião. E o maridão? “Ele também trabalha muito, mas temos períodos de espera e inatividade profissional em que a prioridade é toda da família.”
Incansável, Dira tem atualmente, além de Pureza, dois outros filmes rodados e uma novela a caminho (leia nesta página). Os filmes são Divino Amor, de Gabriel Mascaro, e Veneza, de Miguel Fallabela. “Interpreto mulheres diferentes da Pureza (Santos Loyola), mas o bacana é isso. A diversidade me permite criar um espectro feminino bem amplo”.
“O empoderamento das mulheres não tem uma só cara”, ela explica. Veneza terminou sendo uma das mais inesperadas surpresas de sua carreira. “Miguel Fallabela é um autor dos mais conhecidos. Tem um elenco de mulheres maravilhosas que costumam trabalhar com ele. Eu nunca me imaginei participando desse universo, e aí o Miguel me chamou para o filme dizendo que a personagem tinha a minha cara e havia sido escrita pensando em mim.”
Veneza é o segundo longa de Fallabela, dez anos depois de Polaróides Urbanas, que é de 2008. Baseia-se na peça do escritor e dramaturgo argentino Jorge Accame e conta a história de uma cafetina cujo grande sonho é reencontrar o único homem que amou (e a quem tratou muito mal). Conta, para isso, com a cumplicidade das prostitutas que trabalham em seu bordel, e se juntam a um circo para fazer com que Gringa, a cafetina, possa encontrar seu amado, senão na realidade, por meio da fantasia. Fallabela filmou no Uruguai e na Itália – Veneza, claro. A almodovariana Carmem Maura faz a protagonista. Dira integra o grupo das prostitutas com Danielle Winits, Carol Castro e Georgina Barbarossa, muito popular na Argentina.
Com destacadas participações em filmes de Cláudio Assis, Dira Paes tem um apreço muito grande pelo cinema pernambucano. “Seus diretores têm uma pulsão muito forte (de vida)”, esclarece. Um desses grandes diretores, justamente com Assis, é Gabriel Mascaro, autor do belíssimo Boi Neon, com sua discussão dos papéis sociais de homens e mulheres. Com Mascaro, Dira fez Divino Amor. “Minha personagem é escriturária num cartório. Ela atende o setor de divórcios, é evangélica e usa seu conhecimento da Bíblia para o que considera a missão de sua vida – impedir que os casais se separem. No filme, ela participa do teste de elenco para uma produção evangélico-erótica que pretende mostrar que a sexualidade aumentada é a verdadeira garantia de uma família unida.” Ela contracena com Júlio Machado, que foi o Joaquim de Marcelo Gomes.
Três filmes – três diferentes retratos de mulheres. Pureza, Divino Amor, Veneza. A garota que começou como índia – A Floresta das Esmeraldas (1985), de John Boorman –, foi cangaceira (Corisco e Dadá, de Rosemberg Cariry, 1996) e professora (na novela Velho Chico), prossegue uma das carreiras mais belas do audiovisual brasileiro. Na cidade, na floresta, no sertão, Dira representa, com orgulho e talento, as muitas faces das mulheres do Brasil.
“Interpreto mulheres diferentes da Pureza, mas o bacana é isso; a diversidade me permite criar um espectro feminino bem amplo”