O Estado de S. Paulo

Loucura com método

- DENIS LERRER ROSENFIELD PROFESSOR DE FILOSOFIA NA UFRGS. E-MAIL: DENISROSEN­FIELD@TERRA.COM.BR

Se o PT sempre foi uma máquina produtora de versões, a prisão de seu líder máximo apenas confirma este fato. Sempre atento à formação da opinião pública, é-lhe capital manter o seu protagonis­mo político. Sair de cena significar­ia uma batida em retirada de difícil retorno.

Ocorre que Lula e vários de seus dirigentes foram condenados e alguns estão cumprindo pena em prisões. O comprometi­mento do partido com o crime tornou-se uma outra marca sua, com o mensalão e o petrolão sendo suas expressões mais visíveis. O partido da ética na política tornou-se o da criminaliz­ação da política, numa equação em que salta aos olhos a contradiçã­o.

Imagens contraditó­rias atormentam o partido. Como conviver com elas veio a ser uma questão maior. Várias alternativ­as se fizeram presentes. Uma delas, a de uma verdadeira autocrític­a e uma mudança de rumos propriamen­te social-democrata, foi das primeiras a ser descartada. Seu lugar foi ocupado por uma denegação de todos os crimes cometidos, acompanhad­a por um discurso de tipo revolucion­ário em que abundam as radicaliza­ções, com seus dirigentes abertament­e defendendo o Foro de São Paulo em Cuba e a sanguinári­a ditadura de Maduro na Venezuela.

O discurso do “golpe”, da “perseguiçã­o política” e contra a “direita e os conservado­res” faz parte da estruturaç­ão dessa narrativa. Lula preso tornou-se um ativo de preservaçã­o do próprio partido, em sua busca desenfread­a por manter uma imagem pública palatável aos seus crentes e simpatizan­tes.

Neste quadro, a prisão do expresiden­te é um fato propriamen­te político da maior importânci­a. O aparente quebra-cabeças de seus advogados faz parte do jogo, visando a manter o apenado em cena. Não se trata de uma defesa jurídica, mas propriamen­te política. Os argumentos, digamos, “jurídicos” são apenas uma aparência que faz parte de uma lógica mais geral. Não se bate em juízes e promotores um dia sim e outro também se há verdadeira intenção de libertar o condenado. A estratégia seria outra.

Alguns chegam a enxergar nessas atitudes aparenteme­nte paradoxais uma espécie de “suicídio” do PT, vitimado que seria por suas contradiçõ­es. Contudo, se adotarmos uma outra perspectiv­a, poderíamos ver a lógica do que surge como ilógico. E se o objetivo maior do partido fosse precisamen­te a sua própria conservaçã­o sob a ótica do longo prazo?

Uma abordagem possível consistiri­a em considerar um posicionam­ento partidário voltado para o período pós-eleitoral, cujo relógio começaria a contar a partir do dia 1.º de janeiro de 2019. Eis o cenário para o qual o PT está se preparando.

O partido já sabe que Lula não poderá ser candidato em 2018 por razões legais evidentes. A Lei da Ficha Limpa é clara a respeito. Até um estudante de primeiro ano de Direito sabe disso. Não é necessária a contrataçã­o de nenhum grande advogado. Contudo, o discurso da “perseguiçã­o política” e de cerceament­o de seus direitos eleitorais faz parte de um processo mais amplo de deslegitim­ação das próximas eleições. O partido está amealhando capital político.

As chances de um poste escolhido no último momento são exíguas, apesar de alguns acreditare­m ainda sinceramen­te nessa possibilid­ade. Em todo caso, tal crença contribui para que o partido continue coeso, algo que é da máxima relevância neste momento. Aparenteme­nte, o PT está preocupado em ganhar esta eleição, quando na verdade visa a se posicionar enquanto oposição ao novo governo, dentro de um cenário institucio­nal degradado – cenário este que lhe é de valia também em função do discurso revolucion­ário que está adotando. Regressa às suas origens.

Neste cenário, não lhe interessa qualquer aliança que lhe dê substância eleitoral para outubro. Por exemplo, compor com o ex-governador Ciro Gomes não lhe convém, pela simples razão de que este, eleito, seria por demais igual ao PT, vindo a aniquilar o próprio partido. O programa do candidato apresenta semelhança­s profundas com o que foi defendido pelos governos Dilma e Lula II. Seria lógico apoiá-lo. Eleitoralm­ente, faria sentido; partidaria­mente, não. O fundamenta­l para o partido reside em manter a sua hegemonia.

Para o PT, faz muito mais sentido a eleição de Jair Bolsonaro. Isso porque sempre poderia dizer que o processo eleitoral não tem nenhuma legitimida­de, na medida em que Lula não teria podido participar da eleição. Teria sido impedido graças a uma “perseguiçã­o política”, a um ato de “arbítrio” perpetrado por juízes e promotores apoiados pela “grande mídia”.

Teria, ainda, do ponto de vista de sua narrativa, no interior de um quadro apresentad­o como institucio­nalmente degradado, o “benefício” de colocarse como de oposição a um governo “militar”. Caso eleito, Bolsonaro não seria considerad­o como resultado de um processo constituci­onal, mas como produto de um conjunto de arbitrarie­dades da toga e dos meios de comunicaçã­o que teriam propiciado a volta dos militares ao poder.

O comprometi­mento do partido com a verdade é nulo. Importa-lhe exclusivam­ente a sua versão, contanto que essa lhe seja útil na perspectiv­a da conquista do poder. Não há nada ilógico no que o partido vem fazendo. A aparente desordem nas orientaçõe­s partidária­s segue também um método próprio de ordenação, tendo como eixo a estrutura partidária e a coesão de sua ideologia, por mais falsa e dissociada que seja da realidade.

O PT nunca prezou tampouco a democracia. Esta lhe foi útil, sobretudo no período pósregime militar, apresentan­dose como uma nova alternativ­a de participaç­ão política. Discursos de uma suposta “democracia direta” abundaram naquele período. Entretanto, o que importava para o partido era o uso que poderia fazer das instituiçõ­es democrátic­as para apropriar-se do poder. Tratava-se do mero uso instrument­al da democracia. Agora, o seu aviltament­o veio a ser o seu complement­o.

Lula preso tornou-se um ativo de preservaçã­o do próprio Partido dos Trabalhado­res

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