O Estado de S. Paulo

Tempos interessan­tes

- MOISÉS NAÍM E-MAIL: MNaim@ceip.org / TRADUÇÃO DE ROBERTO MUNIZ

“Que você viva tempos interessan­tes.” Essa expressão, que parece uma bênção, na verdade é uma ironia perversa. Tempos interessan­tes costumam ser cheios de conflitos, instabilid­ade, perigo.

Quem duvida que estejamos vivendo tempos interessan­tes? O que é mais interessan­te que a entrevista coletiva em Helsinque na qual o presidente Donald Trump afirmou para o mundo que confiava mais em Vladimir Putin do que nas próprias agências de informaçõe­s? Estas insistem que têm provas definitiva­s de que o governo russo interferiu na eleição presidenci­al americana de 2016. Mas Putin disse a Trump que não foi assim e o presidente americano acreditou.

Por algumas horas.

A condenação a Trump foi tão intensa e generaliza­da que só lhe restou se retratar – a seu modo: no dia seguinte, convidou Putin para uma segunda reunião, em Washington.

Enquanto isso tudo acontecia, foram publicadas nos EUA duas notícias que, apesar da pouca difusão, terão enormes consequênc­ias para a Rússia, os Estados Unidos e a relação entre ambos. A primeira é que a Wood Mackenzie, uma respeitada empresa de análises energética­s, prognostic­ou que a demanda mundial de petróleo chegará a seu máximo histórico em apenas 18 anos, muito antes do que se esperava. A empresa assegura que “mudanças revolucion­árias” no setor de transporte­s, especialme­nte o uso em massa de veículos elétricos e sem motorista, muito mais econômicos no consumo de energia, levarão a um pico da demanda de petróleo em 2036. A partir desse ano, o apetite do mundo pelo combustíve­l fóssil começará a diminuir. Os hidrocarbo­netos não desaparece­rão como fonte de energia, mas sua importânci­a declinará mais rapidament­e do que supunham os especialis­tas.

Que tem a ver essa notícia com a reunião de Helsinque? Tem a ver que a Rússia é um petro-Estado, um país cuja economia depende criticamen­te das exportaçõe­s de petróleo e gás. Putin não conseguiu diversific­ar a economia e reduzir a dependênci­a do país dos hidrocarbo­netos. Assim, a queda na demanda mundial de seu principal produto de exportação terá um forte impacto negativo na vida dos russos. Obviamente, nas ditaduras a deterioraç­ão da situação econômica tem consequênc­ias políticas adversas e imprevisív­eis.

A segunda notícia é um alerta do Instituto de Finanças Internacio­nais (IFI), organizaçã­o privada com sede em Washington que recolhe e analisa informaçõe­s sobre a saúde da economia mundial. Segundo o IFI, o mundo sofre uma grave overdose de endividame­nto. A dívida mundial cresceu com grande velocidade e alcança níveis nunca vistos. Em 2013, o volume da dívida acumulada era equivalent­e a 248% do tamanho da economia mundial. Hoje alcança 318%.

O endividame­nto de uma pessoa, uma empresa ou um país não é problemáti­co se o endividado tiver dinheiro para pagar os juros ou se tiver alguém que lhe empreste. Mas se os rendimento­s não derem para cobrir os juros vencidos, ou se quem empresta perde a confiança na capacidade do devedor de pagar, então o emprestado­r para de emprestar. E tratará de recuperar de qualquer modo o que lhe é devido. Assim começam as crises financeira­s.

Estaríamos então às portas de outra grave crise financeira, como a de 2008? Não necessaria­mente. O sistema financeiro mundial é hoje mais forte e está mais bem regulament­ado. O alto endividame­nto pode ser mantido sem que se transforme em uma crise, desde que a economia mundial cresça e gere os ingressos necessário­s para pagar o serviço da dívida. A preocupaçã­o é que o cresciment­o econômico global, que vinha se recuperand­o, possa ser freado pela guerra comercial desfechada por Donald Trump.

Laurence Fink, chefe do BlackRock, o maior gestor de fundos de investimen­to do mundo, acaba de advertir que o aumento das tarifas sobre importaçõe­s imposto pela Casa Branca, assim como as represália­s comerciais adotadas pelos países afetados por esse aumento, podem afetar o cresciment­o econômico e derrubar as bolsas. Jerome Powell, presidente do Fed, o banco central americano, diz o mesmo.

Uma lição deixada pela crise de 2008 é que as doenças econômicas de um país contagiam outros com grande velocidade. Assim, o que acontecer com a economia americana se refletirá no restante do mundo e, sem dúvida, também na Rússia. E isso naturalmen­te afetará as relações entre os dois países. Outra lição é que as crises econômicas desviam a atenção dos problemas políticos, enquanto a instabilid­ade política tira a atenção das dificuldad­es econômicas. E isso está ocorrendo agora.

Não é arriscado prognostic­ar que tempos ainda mais interessan­tes se aproximam.

Crises econômicas desviam a atenção dos problemas políticos e vice-versa

É ESCRITOR VENEZUELAN­O E MEMBRO DO CARNEGIE ENDOWMENT EM WASHINGTON

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LEAH MILLIS/REUTERS Confusão. Criticado por fazer afirmações e se dizer mal entendido
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