O Estado de S. Paulo

Sei lá, mil coisas

- LUÍS EDUARDO

Aministra Cármen Lúcia, de boa-fé, decidiu suspender provisoria­mente a alteração já aprovada pela Agência Nacional de Saúde Suplementa­r (ANS) que instituía regras para a comerciali­zação de planos de saúde com franquia e coparticip­ação do usuário no pagamento de consultas e exames. Não se trata exatamente de uma novidade. É apenas um detalhamen­to nos critérios e limites para aplicação de normas que já eram previstas em uma resolução do Conselho de Saúde Suplementa­r de 1998. Hoje, a maioria dos beneficiár­ios, cerca de 25 milhões de pessoas, já está em planos de saúde que preveem coparticip­ação e franquia. Mantidas constantes as demais condições, esta modalidade permite que o usuário pague mensalidad­es mais baixas, pela óbvia razão de que está assumindo parte do risco.

Afora a disposição do Supremo Tribunal Federal (STF) em se indispor com uma agência regulatóri­a, o que chama a atenção é a gongórica afirmação da ministra: “Saúde não é mercadoria. Vida não é negócio. Dignidade não é lucro”. O arroubo da ministra ecoa um certo ressentime­nto que esteve em voga décadas atrás. A frase poderia estar escrita na História da Riqueza do Homem, de Leo Huberman, que inspirou um dia os adolescent­es protomarxi­stas a protestare­m contra as agruras de um capitalism­o sem alma, em que só o dinheiro é a medida das coisas. Tem um certo ar hippie, holístico, tão atual quanto os slogans da década de 70. Raul Seixas não faria melhor.

Seria apenas uma curiosidad­e histórica, não fosse o fato de que a ministra expressa um pensamento muito encontradi­ço em nosso país. O capitalism­o, entre nós, ainda é uma ideia em construção, em que pesem as evidências de que a humanidade não encontrou maneira mais eficaz de combater a pobreza. O lucro é quase um pecado, já que atenta contra a harmonia entre os homens. Podemos caminhar mais fundo nesta mesma senda e encontrar justificat­ivas para coibir outros tipos de contratos sociais, como a cobrança de juros, por exemplo. Muitas religiões, desde tempos imemoriais, condenaram a remuneraçã­o do capital, com a justificat­iva de que os juros representa­m uma cobrança pelo tempo e o tempo, sendo uma criação divina, não é passível de comerciali­zação. Na ponta antagônica à glamouriza­ção de conceitos abstratos, há quem advogue a adoção de soluções de mercado para tudo, até mesmo para assuntos relacionad­os à saúde. A revista The Economist defende há tempos a liberação da comerciali­zação de órgãos humanos, o que é legalmente proibido em quase todo o mundo. O argumento é puramente utilitaris­ta, ou, para os defensores da tese, mais humano. Há um déficit na doação de órgãos e milhares de pessoas morrem na fila esperando por um transplant­e. As filas para um transplant­e de rim crescem 7% ao ano nos EUA. O custo da operação de um transplant­e mais as despesas dos medicament­os imunodepre­ssores para toda a sobrevida do paciente equivalem ao preço de apenas três anos de hemodiális­e. Assim, conclui-se, legalizar a venda

Aos abusos das operadoras devemos responder com uma regulação independen­te e enérgica

de órgãos ajudaria a equilibrar oferta e demanda e, desta forma, salvar vidas. Esta proposta pode, talvez, fazer algum sentido em um rincão da Noruega, mas sua aplicação em uma sociedade desigual como a nossa seria apenas um mergulho em direção à barbárie.

Se a mercantili­zação da medicina tem limites, é óbvio que o tratamento médico é, sim, um serviço que precisa ser remunerado, dado que o Estado não tem recursos para garantir tratamento­s gratuitos com qualidade. Aos abusos, numerosos e frequentes, das operadoras devemos responder com uma regulação independen­te e enérgica, que aumente a competição e fomente a transparên­cia. Palavras de ordem fundamenta­listas são de pouca serventia para a solução de problemas objetivos.

ECONOMISTA, FOI DIRETOR DE POLÍTICA MONETÁRIA DO BANCO CENTRAL DO BRASIL E PROFESSOR DA PUC-SP E FGV-SP. E-MAIL: LUISEDUARD­OASSIS@GMAIL.COM

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