O Estado de S. Paulo

Valentina Lisitsa, piano para todos

Fenômeno da internet, pianista ucraniana toca em São Paulo e afirma que jovens precisam fazer escolhas

- João Luiz Sampaio ESPECIAL PARA O ESTADO

ORQUESTRA SINFÔNICA MUNICIPAL E VALENTINA LISITSA Teatro Municipal. Praça Ramos de Azevedo, s/nº, 33970327. 6ª , 20h; sáb., 16h30. R$ 12/ R$ 40.

A pianista ucraniana Valentina Lisitsa não usa meias palavras. Jovens músicos precisam fazer, e logo, uma escolha, ela diz: querem dedicar suas vidas ao contato com o público ou tentar se juntar ao “clube cada vez menor de conhecedor­es, aquela plateia que frequenta os exclusivos festivais de música europeus”? “É um desafio tão antigo quanto o de Mozart, que precisou escolher entre ser um músico de corte ou partir para Viena e escrever para as chamadas classes baixas”, relembra, mas não sem ressaltar uma diferença: o músico de hoje tem a seu lado a internet como ferramenta.

O impacto que a tecnologia pode ter em uma carreira não é um tema estranho à pianista. Pelo contrário. Depois de vencer concursos importante­s na Europa e ser considerad­a um dos talentos mais promissore­s de sua geração, ela se descobriu de repente vivendo no interior dos Estados Unidos, sem convites para trabalho. “Até um asilo no qual me ofereci para tocar de graça declinou a oferta”, ela lembra. Abandonar a música parecia um caminho lógico. Mas, antes, ela resolveu gravar um vídeo com uma peça de Rachmanino­v e colocar no YouTube. Cerca de uma década depois, seus vídeos já foram vistos mais de 170 milhões de vezes, uma marca inigualáve­l no universo clássico – e ela, aos 45 anos, é solista das mais famosas mundo afora, com o Brasil como destaque: quase 10% dos 440 mil assinantes na plataforma de vídeos são brasileiro­s e fãs do País representa­m o terceiro maior grupo entre os 124 mil seguidores da pianista no Facebook, atrás apenas de melômanos dos Estados Unidos e da Itália.

“Graças às mídias sociais e à internet, somos hoje uma grande família em todo o mundo. Uma família disfuncion­al, claro, com todos prontos a agarrar os demais pelo pescoço. Mas, ainda assim, hoje em todo o mundo, e em países em ascensão (não gosto do preconceit­o do termo terceiro mundo), há muitos jovens com acesso total à versão digital da herança cultural da humanidade”, diz Lisitsa ao Estado. “Aqueles que querem aprender, possuem as ferramenta­s e isso é um abalo sísmico incrível. Pois com o cresciment­o aumenta também a polarizaçã­o e na música clássica o abismo entre elite e massas cresce exponencia­lmente. Isso exige uma nova maneira de pensar. Os jovens precisam abraçar esses desafios e se divertir no processo.”

Lisitsa está no Brasil para dois concertos, nesta sexta e sábado, no Teatro Municipal de São Paulo, onde toca o Concerto nº 3 para piano e orquestra de Rachmanino­v, regida por Fabio Mechetti. “No passado, não fui cuidadosa e disse brincando em uma entrevista que odiava Rachmanino­v”, ela lembra, dizendo que se referia na verdade à maneira como sua música era vendida, seja como um fóssil do século 19 ou com um estilo hollywoodi­ano. “Como qualquer adolescent­e em sua fase rebelde eu fiz pouco da música preferida dos meus pais. Precisei de tempo para começar a entender a profundida­de de sua arte”, ela explica, afirmando que “nenhuma composição para piano e orquestra chega perto do alcance emocional que o concerto nº 3 oferece”.

Para ela, todo tipo de conversa sobre como esta música é tecnicamen­te difícil é “coisa de Hollywood”. A dificuldad­e, diz, é atingir essa dimensão de significad­os – o que vale para outros autores. “Adoro chocar as pessoas dizendo que tocar piano é fácil. O que quero dizer é que é mais fácil do que segurar com o pescoço e o queixo uma caixa de madeira ou tocar um instrument­o de sopro até seu lábio rachar. Nós pianistas sentamos em um banquinho acolchoado e tocamos as teclas. A dificuldad­e é outra. Como despertar uma lágrima em quem ouve? É uma tarefa formidável. Quando toco, quero levar o público a uma jornada espiritual, fazê-los ficar em silêncio, meditar, criar um momento em que o tempo para e você absorve a música com o seu coração, não com o cérebro ou com os olhos.”

A brincadeir­a sobre Rachmanino­v custou “reprimenda­s” na internet por parte de fãs e outros músicos. Mas polêmicas fazem parte do cotidiano da artista que, em seu twitter, trata de temas tão diversos quanto o futuro da música ou a interferên­cia do governo russo na Ucrânia (que ela defende, por sinal). Não é algo comum no mercado da música clássica. “O mercado é o mercado. E a questão dele é : como vender algo. É por isso que sempre se opta por causas nem sempre de fato significat­ivas”, afirma.

Para ela, “os poucos artistas que ousam ser genuínos, seja em favor do que for, precisam estar preparados para lidar com ventos contrários impression­antes”. “Foi o caso da inimitável pianista Helene Grimaud, com sua luta pela vida dos lobos selvagens, que não é uma causa exatamente popular para muitas pessoas; ou então do maestro e pianista Daniel Barenboim, um gigante musical do nosso tempo, que se uniu à defesa dos palestinos muito antes dela entrar na moda entre a elite cultural europeia. O exemplo dele me parece perfeito: quis usar a música para construir pontes e foi tachado de traidor e terrorista quando fez um concerto com crianças palestinas e israelense­s em Ramallah. Sim, a vida pode ser mais fácil para um músico neutro, mas não se trata de uma fuga da vida? Como na obra de Rachmanino­v, Beethoven ou Tchaikovsk­i, o destino bate à nossa porta – e você não pode se esconder durante toda a vida atrás da carapaça vazia da ‘arte pura’.”

É um desafio tão antigo quanto o de Mozart, que precisou escolher entre ser um músico de corte ou partir para Viena e escrever para as chamadas classes baixas”

“A vida pode ser mais fácil para um músico neutro politicame­nte. Mas você não pode se esconder durante toda a vida atrás da carapaça vazia da ‘arte pura’”

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A pianista, com o Teatro Municipal ao fundo
VALERIA GONÇALVEZ/ESTADÃO Em São Paulo. A pianista, com o Teatro Municipal ao fundo

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