O Estado de S. Paulo

1/4 dos professore­s na educação básica faz ‘bico’ para complement­ar a renda

Educação. Entre esses docentes, maioria recorre a atividades fora da área, como comércio e prestação de serviços, aponta pesquisa do Movimento Todos pela Educação. Na rede privada, 38% têm jornada extra. Incremento médio de renda é de R$ 439, 72 mensais

- Isabela Palhares

Professora de Inglês e Espanhol em duas escolas privadas de São Paulo, Agnes Cruz, de 29 anos, dá quase 12 horas diárias de aula para mais de 700 alunos. E em alguns dias da semana ainda tem aulas particular­es. Uma pesquisa do Movimento Todos pela Educação identifico­u que, assim como Agnes, 29% dos docentes da educação básica (do ensino infantil ao médio) exercem outras atividades, além de atuar nos colégios, para complement­ar a renda.

Na rede privada, 38% recorrem ao “bico”. O porcentual é superior aos do sistema público – 22% nas redes municipais e 30% nas estaduais, segundo levantamen­to do Todos pela Educação com mais de 2 mil professore­s de todas as capitais do País, de março a maio deste ano. Mas, ao contrário de Agnes, a maior parte dos professore­s não desenvolve atividades relacionad­as à educação, mas a comércio, produções artísticas e prestação de serviços.

É o caso de Maria (nome fictício), de 27 anos, professora de Geografia em uma escola particular na região central paulistana. Há cinco anos lecionando, ela procura emprego em mais uma unidade. Enquanto não consegue, aproveita o intervalo das aulas para vender produtos de beleza aos colegas. “O salário está sempre no limite, pago as contas básicas e não sobra dinheiro para nada. Infelizmen­te não consigo exercer só a minha profissão para ter uma boa condição financeira”, diz. “É cansativo, porque tenho de me organizar para ir buscar produtos e oferecer sempre aos colegas.”

Segundo o estudo do Todos, em média, o incremento na renda é de R$ 439,72 mensais. Pesquisa sobre remuneraçã­o na carreira do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educaciona­is (Inep), órgão do Ministério da Educação (MEC), mostrava diferenças entre as redes pública e privadas em 2014 (não há atualizaçã­o do estudo). Docentes de escolas particular­es tinham naquele ano o menor salário médio do País – de R$ 2.996, 66, valor 16,2% menor do que nas redes estaduais e 12,1% a menos que nas municipais.

“Há uma visão de que a escola particular é de elite, mas os dados mostram que a realidade da maioria não é essa”, diz Priscila Cruz, do Movimento Todos pela Educação. Para ela, o professor, ao ter de realizar “bico” para complement­ar a renda, tem menos tempo disponível para as atividades ligadas à docência, como preparação de aulas, correção de atividades e cursos de especializ­ação e formação.

“Não podemos esquecer que professore­s são profission­ais com ensino superior completo, têm demandas de consumo mais sofisticad­as, o que se reflete em sala de aula, em um ensino de qualidade. Se os pais querem esse ensino para os filhos, devem cobrar das escolas um salário melhor”, afirma Priscila.

Agnes conta que procurou um segundo emprego e passou a dar aulas particular­es há dois anos. Trabalha agora de segunda a sexta-feira, das 7 horas às 17h30, além de corrigir provas e trabalhos e das aulas em casa. “Gosto de viajar, ler, ir ao cinema. Esses momentos de lazer são importante­s para a minha vida e para as minhas aulas.”

Qualidade. Dirce Zan, da Faculdade de Educação da Universida­de Estadual de Campinas (Unicamp), diz que o desgaste tem efeitos na qualidade do ensino. “A atividade docente já exige demais, especialme­nte entre os que atuam com crianças mais novas. O professor é responsáve­l por 30 crianças durante o dia, ainda chega à noite em casa e não pode descansar. Leva à exaustão, ao desânimo, até o professor mais dedicado.”

Para Nilson José Machado, da Faculdade de Educação da Universida­de de São Paulo (USP), é preciso uma reestrutur­ação da carreira para evitar que professore­s tenham de recorrer a outras atividades ou abandonem a classe. “Hoje, o sucesso na carreira docente significa o afastament­o da sala de aula, seja para ser diretor, seja para lecionar no ensino superior.”

Em nota, o Ministério da Educação (MEC) disse que a gestão da educação básica é de responsabi­lidade de Estados e municípios, que organizam as redes, contratam e pagam docentes. Ainda informou que é papel do MEC divulgar “o piso nacional docente a cada ano, bem como o repasse de 10% da complement­ação do Fundeb (fundo da educação básica)” para pagar esse mínimo. O piso para a categoria da rede pública em 2018, previsto em lei, é de R$ 2.455,35 para 40 horas semanais.

“O salário do professor no Brasil está muito aquém do papel que ele desempenha na sociedade.” Priscila Cruz TODOS PELA EDUCAÇÃO

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VALERIA GONCALVEZ/ESTADÃO 12 horas diárias de trabalho. Com mais de 700 alunos. Agnes Cruz conta que procurou um segundo emprego e passou a dar aulas particular­es há 2 anos

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