O Estado de S. Paulo

‘Insetos’ atesta vigor da Cia dos Atores, mas falta fôlego ao texto

- Maria Eugênia de Menezes ESPECIAL PARA O ESTADO

Quando a realidade é absurda demais, apenas a fantasia pode fazer algum sentido. Ensaio Sobre a Cegueira, de José Saramago, e A Metamorfos­e, de Franz Kafka, são alguns exemplos de como a literatura pode se valer de alegorias para representa­r situações nas quais um relato verossímil teria pouco a acrescenta­r. Insetos, espetáculo com o qual a carioca Cia dos Atores celebra seus 30 anos, utiliza expediente semelhante. Com o intuito de problemati­zar a atual crise brasileira, conta-se a história de um desequilíb­rio natural que teria levado ao desapareci­mento das abelhas. Tal ausência culmina com a ascensão de um ditatorial louva-a-deus ao poder e a consequent­e escravizaç­ão de outras espécies, como baratas e formigas.

O texto é de Jô Bilac – autor profícuo da cena atual com quem a companhia já havia trabalhado em Conselho de Classe. Mas o grupo, acompanhad­o pelo diretor Rodrigo Portella, modificou a dramaturgi­a original, reforçando os laços com o contexto imediato, como a ocupação militar no Rio. A desconstru­ção dos textos é uma prática corrente da Cia dos Atores. Assim ocorreu em algumas de suas mais marcantes criações, como Ensaio.Hamlet, de 2004, e Gaivota – Tema para um Conto Curto, de 2006.

Em sua maneira debochada de tecer associaçõe­s entre a ficção representa­da e a realidade, a montagem escapa de algumas armadilhas, garantindo ao espectador a prerrogati­va de interpreta­r as metáforas conforme as próprias referência­s. É possível rir da tragédia nossa de cada dia: dos gafanhotos que agem como a burguesia endinheira­da, enclausura­ndo-se em espaços fora do caos urbano ou dos besouros que emprestam sua força a um aliado que não hesitará em destruí-los quando não mais se mostrarem úteis. Por esse prisma, as relações entre presas e predadores na natureza não diferem tanto assim da política.

Nos anos recentes, a formação do grupo se alterou: Drica Moraes e Enrique Diaz saíram para outros projetos, a diretora Bel Garcia morreu em decorrênci­a de um câncer em 2015. Mesmo com as mudanças, caracterís­ticas importante­s foram conservada­s. César Augusto, Marcelo Valle, Marcelo Olinto, Gustavo Gasparani e Suzana Ribeiro são egressos do núcleo original do grupo que estão no elenco da peça em cartaz até 20/8. A acertada dosagem entre o humor e o desencanto vem amparada por um não menos precioso trabalho físico. Ainda que não pretendam imitar um inseto ou outro, os atores mostram apuro em todo o gestual, pinçando apenas alguns traços caracterís­ticos para suas composiçõe­s. A opção não apenas amplia o efeito cômico como também abre perspectiv­as que podem transcende­r o texto escrito.

Formado por pneus velhos, o cenário ganha diferentes formas conforme a manipulaçã­o dos atores e o desenho de luz de Maneco Quinderé. A maneira de contar a história, dividida em 12 quadros, também traz bom ritmo e deixa algumas lacunas que podem ser interessan­tes às leituras do público.

A despeito de todas as qualidades da montagem e do alto rendimento dos atores, o espetáculo não consegue superar algumas limitações dessa fábula animal que abraçou. Fica a sensação de que há um salto que o texto não dá. A peça descortina um panorama reconhecív­el, mas não avança além desse território. É como se o autor nos acenasse com uma promessa que não se concretiza, como se mirasse de longe a crise que nos atravessa sem vasculhar as entranhas desse mal-estar.

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