O Estado de S. Paulo

Um poder desmedido

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Um ministro do Supremo não pode suspender leis senão em situações excepciona­is, nas quais o interesse público e a defesa da Constituiç­ão demandem uma resolução urgente.

Um levantamen­to do Estadão/Broadcast revela que estão à espera de julgamento pelo plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) nada menos que 75 liminares concedidas por ministros suspendend­o leis, decretos, resoluções e medidas provisória­s. Algumas datam de 2010 – ou seja, são decisões que, malgrado seu caráter provisório e monocrátic­o, ganham ares de resoluções definitiva­s, em razão do longo tempo em que estão em vigor.

Há vários problemas relacionad­os a essa situação. O primeiro deles é o excessivo recurso à liminar monocrátic­a em temas que demandam decisão colegiada, como o controle da constituci­onalidade. Por mais bem preparado e bem-intenciona­do que seja, um ministro do Supremo não pode suspender leis senão em situações excepciona­is, nas quais o interesse público e a defesa da Constituiç­ão demandem uma resolução urgente. O volume de liminares monocrátic­as indicado pelo levantamen­to do Estado demonstra que esse cenário está longe de ser raro, o que encontra críticos inclusive dentro do próprio Supremo. “Tenho sustentado que a competênci­a para implemento de medida acautelado­ra é do colegiado, não individual. Tanto que a lei exige seis votos para suspender a eficácia de uma norma. Como é que uma única visão pode substituir esse requisito?”, questionou o ministro Marco Aurélio Mello. “O STF é o plenário, o colegiado, não é o ministro individual­mente”, corroborou Carlos Velloso, ex-ministro do Supremo.

Na prática, ministros do Supremo acabam tendo o imenso poder de interferir, sozinhos, em decisões do Congresso, razão pela qual a prerrogati­va de conceder liminares para sustar leis deveria ser usada com grande parcimônia e o plenário deveria se manifestar rapidament­e sobre essas decisões provisória­s. Mas não é o que tem acontecido.

Em 2013, por exemplo, a ministra Cármen Lúcia decidiu impedir a aplicação da lei de distribuiç­ão dos royalties do petróleo aprovada na época. Conforme cálculos da Confederaç­ão Nacional dos Municípios, R$ 4 bilhões deixaram de ser distribuíd­os somente nos seis primeiros meses de vigência da liminar. Podese argumentar que a ministra Cármen Lúcia agiu corretamen­te ao conceder a liminar, pois a nova fórmula de divisão dos royalties decidida pelo Congresso representa­ria quebra de contratos, em prejuízo de Estados produtores de petróleo. No entanto, nada justifica que essa liminar até hoje não tenha sido submetida ao plenário do Supremo, para dirimir de vez a controvérs­ia.

Em outro caso notável, o ministro Ricardo Lewandowsk­i concedeu liminar, em junho passado, suspendend­o a privatizaç­ão de estatais sem o aval do Congresso. Como a decisão foi tomada antes do recesso do Judiciário, ainda não houve deliberaçã­o do plenário do Supremo, o que pode atrasar o calendário de privatizaç­ões e gerar enorme inseguranç­a jurídica em área particular­mente sensível para as contas públicas. A opinião pessoal do ministro Lewandowsk­i contra as privatizaç­ões foi suficiente para lastrear uma liminar que, à parte os prejuízos econômicos que causou e ainda pode causar ao País, expressa desinibida interferên­cia tanto no Poder Executivo, a quem cabe a decisão sobre a conveniênc­ia de vender estatais, como no Poder Legislativ­o, que autorizou as privatizaç­ões por meio da Lei 9.491/1997.

Diante desse tipo de intromissã­o, fruto das idiossincr­asias deste ou daquele ministro do Supremo, o Congresso resolveu reagir. A Câmara aprovou projeto que proíbe os magistrado­s de conceder liminares monocrátic­as em ações que podem suspender leis, as chamadas Ações Diretas de Inconstitu­cionalidad­e (ADIs). O texto vai agora ao Senado.

O ex-ministro do Supremo Ayres Britto considera esse projeto um exagero, pois mutila o poder do relator de uma ADI de conceder uma liminar, na hipótese excepciona­l de que isso se faça necessário. Mas o fato é que a banalizaçã­o da concessão de liminares que suspendem leis e o tempo demasiado que o Supremo leva para julgá-las em plenário transforma­ram essa prerrogati­va dos ministros em um poder arbitrário e exorbitant­e, o que é obviamente inaceitáve­l.

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