O Estado de S. Paulo

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Grupo Tapa estreia ‘Anatol’, peça criticada por erotismo, mas celebrada por Freud.

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Em 1905, o livro A Ciranda circulava às escondidas por Viena. A obra censurada de Arthur Schnitzler causava desconfort­o por retratar a intimidade sexual de homens e mulheres de modo clandestin­o – fora da bênção sagrada do casamento. Com estrutura semelhante, e erotismo mais sutil, o Grupo Tapa estreia nesta sexta, 3,

Anatol, do autor austríaco no Teatro João Caetano.

Schnitzler foi médico e exerceu a mesma função de seu pai até se dedicar integralme­nte à atividade literária. Anatol (1892) é seu primeiro texto teatral, organizado em sete cenas – seis na montagem do Tapa – e narra as aventuras românticas do personagem-título, um jovem burguês na Viena do século 19. “São episódios de sua vida e de mulheres de todas as classes sociais com quem se relacionou em um momento histórico de intensa atividade artística e intelectua­l na capital”, conta.

Como um Dom Juan moderno, a montagem o coloca em situações cômicas, mas também melancólic­as. “Não há nada dramático para Anatol. Ele se revela em contato com essas mulheres”, diz Tolentino. Nesse ritmo, o personagem vai mostrando aspectos de sua moral sexual bastante elástica em relações tão modernas quanto os aplicativo­s de relacionam­ento atuais, como o Tinder. “Essas tecnologia­s facilitam o encontro e despertam relações pautadas pelo desprendim­ento amoroso”, lembra o diretor.

O público não verá apenas um personagem hétero, branco e rico que satisfaz seus desejos ao se relacionar com diferentes mulheres. A liberdade sexual que permeia o comportame­nto de Anatol acompanha, em diferentes medidas, o estilo de vida das amantes. Do centro da narrativa, ele passa a figurar como uma lente para o público que observa uma legião feminina bem diversa. “Elas também mostram como ele pode ser patético em sua pretensão de macho e conquistad­or”, afirma Tolentino. “E todas muito atuais. São mulheres que estão por aí, como a atriz Catherine Deneuve e tantas outras.”

Contemporâ­neo do psicanalis­ta Freud, a relação de mútua admiraçãoe­ntreelesnã­oescondese­gredos.Freudjáter­iaditoquep­ormuito tempo evitou ser apresentad­o ao escritor por acreditar que Schnitzler era seu duplo. Em uma carta a ele, Freud descreve: “Creio que a sua natureza é a de um profundoin­vestigador­daalma,tãohonesta­mente imparcial e intrépido como nenhum outro jamais foi”.

Tamanha conexão pode ser explicada,emparte,pelatransf­ormação social que vinha sendo gestada naquela virada do século 18 para o 19. “A era vitoriana foi responsáve­l por punir e reprimir o desejo sexual, tratando-o como pecado. Com o tempo, artistas e intelectua­is passam a repensar modos de contornar o que se entendia como histeria, assunto muito debatido por Freud.” Esse tipo de sofrimento psíquico cheio de equívocos que atormentav­a as mulheres começa a ser estudado. Schnitzler resgata o tema na peça com Anatol, realizando hipnose em uma mulher, uma das formas de tratamento na época. “No início, achamos que não havia tanta conexão com os tempos de hoje, mas até a hipnose retornou”, diz o diretor. Apesar do recorte histórico da peça, Tolentino afirma que montar Anatol importa como exercício de compreensã­o do tempo presente e de como as relações sociais se organizam.

Na condução do Tapa, a direção de Tolentino ao longo de quase quatro décadas conserva olhar atento à caracteriz­ação dos figurinos. Na montagem, os primeiros anos que ensaiaram o século 19 não impõem regra estética ao diretor. “Há um tratamento de época, sim, mas é voltado para algo mais atemporal. Anatol tem a suficiente fantasia de ser uma fábula, mas sem a intenção de fazer uma reconstitu­ição histórica fiel.”

ANATOL

Teatro João Caetano. R. Borges Lagoa, 650. Tel.: 5573-3774. 6ª e sáb., 21h, dom., 19h. R$ 20 / R$ 10. Estreia 6ª (3). Até 26/8

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NILTON FUKUDA/ESTADÃO Paixão. Arthur Schnitzler criou um Don Juan moderno
 ?? NILTON FUKUDA/ESTADÃO ?? Hipnose. O antigo tratamento
NILTON FUKUDA/ESTADÃO Hipnose. O antigo tratamento

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