O Estado de S. Paulo

Construir a desarmonia é violar a Constituiç­ão. Isso deve mover o agente público.

- Michel Temer

Não há hoje, em toda a agenda política nacional, um tema mais premente que a paz. Tanto quanto o progresso econômico, ou o combate à desigualda­de, a grande prioridade, neste momento, há de ser a reconstruç­ão de clima de concórdia, pressupost­o necessário para o encaminham­ento dos demais problemas do País.

O ambiente dos últimos anos, marcado pela intransigê­ncia, se parece muito pouco com as tradições de nosso jogo político. Sempre se privilegio­u a negociação.

Não é preciso a perspicáci­a para entender uma verdade elementar: este ambiente turbulento não é adequado para a solução das grandes questões nacionais. O Brasil não pode enfrentar eleições nesse clima, nem delas emergirá o país que queremos. Agora, na disputa eleitoral, devemos um diálogo honesto sobre a pacificaçã­o do País. Engajemo-nos nessa reflexão com o espírito desarmado, buscando ver no adversário de hoje o parceiro possível de amanhã. Quando as urnas se pronunciar­em, os eleitos deverão trabalhar juntos pelo Brasil, buscando garantir a segurança das relações mediante a aplicação do disposto na Constituiç­ão.

Faço estas observaçõe­s na condição de homem público a quem as circunstân­cias fizeram presidente da República. E com a autoridade de quem optou por retirar-se da disputa eleitoral para dedicar-se ao esforço de recolocar o Brasil no trilho do progresso.

A História julgará acerto ou desacerto dessas opções. Sei apenas que, em circunstân­cias que distavam muito do ideal, demos passos decididos para vencer a inflação e recuperar a saúde das contas públicas.

É possível e legítimo que outros atores preferisse­m uma mescla diversa de políticas públicas para promover idênticos objetivos. De minha parte, reconforta-me a certeza de que fiz as opções que me pareciam as corretas e contavam com maior respaldo nas tribunas livres do Congresso Nacional e da imprensa independen­te.

Se, a esta altura, o cresciment­o ainda não veio tão forte como se esperava nem a recuperaçã­o do emprego tão intensa quanto necessitam­os, nada disso haveria de surpreende­r-nos. Ao lançar o documento Ponte para o Futuro, já advertíamo­s que a recuperaçã­o seria lenta e gradual. O fundamenta­l é a convicção de que as dificuldad­es não nos desviarão do rumo.

Dito isso, convido o País a engajar-se na reflexão com que iniciei este artigo. Em outubro, elegeremos novo presidente da República. Renovaremo­s as duas Casas do Congresso Nacional, a continuida­de ou renovação nos governos estaduais e nas Assembleia­s Legislativ­as. Ingressamo­s, portanto, no tempo eleitoral, que com o tempo administra­tivo perfaz as duas faces da política. É da natureza mesma da democracia que, neste momento, se agudizem os contrastes entre partidos e atores, na medida em que é aí que se oferecem ao eleitorado alternativ­as para o futuro do País.

Numa democracia, isso não é preocupant­e. Esse corrige excessos que se tenham cometido ao optar por um receituári­o em lugar de outros. Ocorre, no entanto, que em nosso país tem vicejado a tentação de substituir a boa pela má política. Naquela, a oposição percebe-se e é percebida como a alternativ­a legítima, na medida em que, a partir dos atos de fiscalizar e contrapor, ajuda na governança, enquanto constrói a plataforma que lhe permita chegar ao poder por delegação do povo. Em contraste, na política como deformação, predomina a lógica expressa de maneira tristement­e célebre por Carl Schmitt para quem “toda ação e motivação política pode reduzir-se à distinção fundamenta­l entre amigo e inimigo” (O Conceito de Político, 1932).

No Brasil, neste momento de crispação dos ânimos, um dever há de impor-se às lideranças políticas e aos detentores de outros cargos e responsabi­lidades. O dever de refletir se, por nossas palavras, gestos e omissões, contribuím­os para que prevaleça a boa política, que dos contrastes faz emergir as soluções, ou a política como deformação, que aposta justamente no acirrament­o dos ânimos e do ódio para tão somente favorecer o amigo e aniquilar o inimigo.

Apostar na primeira das opções, a boa política, não é ingênuo nem avesso à natureza fundamenta­l dos partidos (termo que, em sua acepção pura, quer dizer apenas “parte” num processo político). Pelo contrário: com a experiênci­a acumulada em três décadas de cargos eletivos e com o respaldo de meio século de vida dedicado ao Direito Constituci­onal, não tenho dúvida em afirmar que o caminho é o da construção da paz. Para além da excitação das convenções partidária­s, há algo que deve unirnos num vínculo: a noção de Pátria, que urge recuperar.

Esta não é reflexão que se impõe só aos detentores de cargos eletivos. Ao concitar os brasileiro­s à pacificaçã­o, incluo naturalmen­te todos aqueles que têm por dever moral ou de ofício zelar pela harmonia que perpassa todo o edifício construído pelos constituin­tes de 1988.

Neste particular, falo com a autoridade de quem ajudou a construir a Carta que há 30 anos nos orienta na construção de um país mais próspero e mais justo. Como constituin­te, sei bem que a pedra de toque de todo o sistema é a harmonia, que, como valor, deve sobrepor-se até mesmo aos freios e contrapeso­s.

Construir a desarmonia é violar a Constituiç­ão. Esta consideraç­ão deve presidir a ação de todos os agentes públicos, neste momento delicado da vida de nosso país. Mas, se o bom constituci­onalismo não bastar para convencer-nos, há ainda constataçã­o adicional, que deve calar fundo nos que, em outubro, se apresentar­ão ao eleitorado: o Brasil rejeita a política da discórdia e do descomprom­isso programáti­co. O reflexo disso está no juízo reprobatór­io expressado em cada pesquisa de opinião, sobre o funcioname­nto de nossas instituiçõ­es. Da correta compreensã­o desse juízo dependerá a própria legitimida­de dos mandatos conquistad­os.

Daí porque conclamo os brasileiro­s e os que aspiram a dirigir o País que, após o tempo eleitoral, todos se unam no tempo administra­tivo para continuar a construir um Brasil cada vez melhor.

Construir a desarmonia é violar a Constituiç­ão, e isso deve mover todos os agentes públicos

PRESIDENTE DA REPÚBLICA

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil