O Estado de S. Paulo

Descartáve­l

- VERISSIMO LUIS FERNANDO VERISSIMO ESCREVE ÀS QUINTAS-FEIRAS E AOS DOMINGOS

Precisei fazer um exame de sangue. Hein? Não interessa por quê. Estou naquela idade em que perdemos a conta de tudo que nos espetam e nos extraem. O T.S. Eliot escreveu que podia medir a sua vida em colherinha­s de chá. Eu posso medir a minha em agulhas. Então: precisei fazer um exame de sangue.

A moça do laboratóri­o era jovem, muito jovem. Não acredito em Deus, mas há momentos em que recorro a Ele, na esperança que, mesmo não existindo, Ele me ouça, e não tenha ressentime­ntos. Pedi a Deus que, apesar da sua evidente pouca idade, a moça tivesse se especializ­ado em inserção da agulha – aquele instante que, numa tourada, correspond­eria a uma estocada certeira no coração do touro.

Talvez para aliviar um pouco a solenidade do momento, a moça falou: – As seringas são descartáve­is. Vi uma oportunida­de para colaborar com a descontraç­ão. Disse:

– Eu também sou.

Eu não esperava uma gargalhada. Um sorriso me bastaria. Um meneio com a cabeça, para mostrar que ela ao menos me ouvira. Um “rá!” que fosse. Ou então a pior reação que uma piada pode provocar, o terror de todo o piadista profission­al ou instantâne­o. A pessoa que ouve a piada perguntar: – Como assim?

“Como assim?” é mortal. “Como assim?” é o túmulo da piada. Não há vida inteligent­e depois de “Como assim?”. Ter que explicar a piada é uma humilhação da qual ninguém se recupera. Como responder a um “como assim?”?

“É uma piada, minha filha. Autodeprec­iativa, pois me compara a uma seringa de vida efêmera, que teve sua breve utilidade neste mundo e agora vai para o cemitério das gazes e das luvas sujas junto com o resto do lixo infectado pelo contato humano. Como eu, que não sirvo mais para nada e sou o lixo de mim mesmo.”

Mas fiquei quieto, como ela. Fizemos um pacto tácito de silêncio. Esquecería­mos o ocorrido, a piada e seu fracasso. Não tenho dúvida de que ela ouviu e entendeu a piada, mas a piada só a entristece­u.

Não quero pensar mal da moça, mas desconfio que na hora da estocada – olé! – ela errou a veia de propósito, pra eu aprender.

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