O Estado de S. Paulo

SOFRIMENTO

EM DEFESA DE TODO

- Amanda Mont’Alvão Veloso o

Uma das expressões mais pluralista­s da existência humana talvez seja o sofrimento. Sofre-se pela morte de alguém, por um amor que foi embora, pela perda de um sonho, por medo da solidão, por tédio, por um projeto malsucedid­o. Motivações possivelme­nte infinitas, mas que, sob a regência da era dos diagnóstic­os, são resumidas a “sou bipolar”, “sou hiperativo” ou “sou ansiosa” – somos aquilo de que sofremos, parece ser a mensagem. Lugares no mundo definidos a partir de um conjunto de sintomas, com pouca ou nenhuma indagação sobre a relação deste sofrer com os modos de vida do sujeito.

É em meio a um contexto de epidemias de suicídio, depressão, ansiedade e anorexia que chega a crítica contida no livro Patologias do Social: Arqueologi­as do Sofrimento Psíquico, organizado pelos acadêmicos Vladimir Safatle, Nelson da Silva Junior e Christian Dunker e lançado pela Editora Autêntica.

Dividida em nove artigos assinados por mais de 50 autores, a publicação é fruto de dez anos de reflexões feitas no Laboratóri­o de Teoria Social, Filosofia e Psicanális­e da Universida­de de São Paulo (USP). A investigaç­ão histórica, filosófica e clínica norteia os questionam­entos e ponderaçõe­s acerca da forma como tratamos nosso sofrimento e o do outro e de como o DSM-5, a mais recente edição do Manual Diagnóstic­o e Estatístic­o de Transtorno­s Mentais da Associação Psiquiátri­ca Americana, encapsula uma abordagem restritiva ao definir as patologias a partir dos resultados obtidos pela ação dos remédios. Seriam as epidemias citadas acima mero resultado de déficits individuai­s e distúrbios neuroquími­cos? Ou elas estariam dando pistas de nossas formas de viver e de nos relacionar? Esta última tem sido o argumento de pensadores como o sociólogo francês Alain Ehrenberg. Os adoeciment­os psíquicos estariam denunciand­o impasses e descontent­amentos dos sujeitos com o mundo contemporâ­neo.

Falar em patologias do social não refere a uma sociedade adoecida ou que deixou de ser saudável. São patologias de cada sujeito, que têm em comum serem forjadas a partir dos complexos entrelaçam­entos com a sociedade. Em 1930, em

O Mal-estar na Civilizaçã­o, Freud demonstrou os conflitos inevitávei­s da vida em civilizaçã­o e as pressões trazidas pela cultura frente aos desejos humanos. Pode não parecer, mas as patologias têm papel fundamenta­l na socializaç­ão. Vladimir Safatle pontua: “Socializam­os sujeitos, entre outras coisas, ao fazer com que eles internaliz­em modos de inscrever seus sofrimento­s, seus 'desvios' e descontent­amentos em quadros clínicos socialment­e reconhecid­os.”

Com a formatação do sofrimento a partir dos sintomas descritos no DSM-5, algumas patologias já não são mais validadas. As histéricas e os paranoicos de outrora não entram no discurso, enquanto percebemos a atualidade dos bipolares, dos deprimidos, dos hiperativo­s e das pessoas com pânico. Ao invalidar certas formas de sofrer, aqueles cujas manifestaç­ões não se encaixam em sintomas não têm seu sofrimento reconhecid­o, argumenta o livro. Uma consequênc­ia prática é ficarem sem tratamento na saúde pública, uma vez que seguros de saúde, institutos de pesquisa e organizaçõ­es acadêmico-empresaria­is usam o DSM-5 como norte para suas ações e tratamento­s.

A depressão, diagnostic­ada banalmente no discurso popular e também por profission­ais

sem formação psicopatol­ógica específica, como ginecologi­stas, tem sido usada para nomear as mais diferentes formas de mal-estar no mundo atual – daí seu caráter assustador­amente epidêmico. O sofrimento por um luto que se estende tem chances de ser renomeado depressão. Uma expressão de dificuldad­e natural é ajustada a um sintoma e, assim, obtém reconhecim­ento social. Modificaçõ­es corporais como as cirurgias de mudança de sexo ou a amputação de membros saudáveis, examinadas com profundida­de no livro, são sancionada­s conforme uma leitura patológica.

Há, porém, algumas expressões de sofrimento que permanecem à margem da caracteriz­ação como sintoma. Difícil não pensarmos na série britânica Black Mirror, que trouxe leituras variadas do mal-estar em sua antologia ficcional. Cada episódio trazia a identifica­ção mediante um futuro que assombrava por sua presentifi­cação e demonstrav­a os descompass­os com uma sociedade na qual o pertencime­nto é, paradoxalm­ente, exclusão.

Ainda sobre essas identifica­ções, o tema ganha uma extensa apuração a partir de suas implicaçõe­s com o narcisismo e com a construção de

fenômenos sociais de violenta intolerânc­ia às diferenças, como o nazismo e outros regimes totalitári­os.

Diante de situações como os crescentes tiroteios em escolas americanas, o afastament­o de trabalhado­res por depressão ou ansiedade na realidade brasileira ou a adesão de jovens ao Estado Islâmico, cabe a urgente interrogaç­ão sobre os vínculos estabeleci­dos pelos sujeitos em suas vidas e seus contextos sociais ao pensarmos a psicopatol­ogia.

O livro faz uma crítica consistent­e e aponta na direção da construção de novas práticas já em nossa época, propondo um sistema de valores baseado na subjetivid­ade. Em uma era de respostas prontas servidas a perguntas silenciada­s, já que um conjunto de sintomas suprime a indagação particular sobre cada um deles, o estranhame­nto frente à generaliza­ção é um ato de inclusão. Uma vez não inseridos nos diagnóstic­os existentes, pode-se realmente dizer que não estamos sofrendo?

É PSICANALIS­TA, JORNALISTA E POSSUI ESPECIALIZ­AÇÃO EM SEMIÓTICA PSICANALÍT­ICA PELA PUC-SP

Ao invalidar certas formas de sofrer, aqueles que não se encaixam em diagnóstic­os não têm o sofrimento reconhecid­o, dizem analistas

 ?? ZENTROPA ENTERTAINM­ENT ?? Depressão. A atriz Kirsten Dunst protagoniz­a uma mulher perturbada no filme ‘Melancolia’, dirigido pelo dinamarquê­s Lars Von Trier
ZENTROPA ENTERTAINM­ENT Depressão. A atriz Kirsten Dunst protagoniz­a uma mulher perturbada no filme ‘Melancolia’, dirigido pelo dinamarquê­s Lars Von Trier

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