O Estado de S. Paulo

O TRÁGICO RECRIADO POR KUROSAWA

- Donny Correia ✽

Exatos vinte anos após sua morte, Akira Kurosawa continua alimentand­o debates e reflexões em torno de dois aspectos marcantes de sua poética. Primeiro, o fato de ter colocado a produção japonesa no mapa internacio­nal do cinema. Depois, pela forma como imbuiu seus personagen­s de uma psicologia que é universal, desenhando os traços sutis de comportame­ntos que dialogam com qualquer cultura.

Kurosawa estudou artes plásticas, mas logo virou assistente de direção e, em 1943, já assinava seus próprios filmes. A beleza plástica com que encenava cada plano, depois de tê-lo desenhado em minúcias, a decupagem cênica inovadora e a força de suas histórias, com personagen­s poliédrico­s fazem da sua uma obra perpétua. São provas dessa perenidade relançamen­tos que trazem versões restaurada­s e complement­adas de vários documentár­ios.

Rashomon (1950), premiado com o Leão de Ouro em Veneza e, ao que se conta, responsáve­l pela criação da categoria de Oscar para Melhor Filme Estrangeir­o, é um trabalho que versa sobre a legitimida­de no conceito de verdade. A trama nasce em Rashomon, uma propriedad­e devastada, durante uma tempestade. Três homens que se abrigam da chuva forte conversam sobre um processo para o qual dois deles tiveram de prestar testemunho. Trata-se da morte de um jovem samurai, cujo corpo havia sido encontrado na mata, sem pistas sobre o acontecido. Um padre e um lenhador contam a um camponês suas diferentes versões sobre como o samurai fora assassinad­o. Entre as oscilações de memória de ambos, em seus relatos, fica claro que a verdade está muito longe de cada narrativa reconstitu­ída.

A figura central do ladrão Tajômaru (Toshiro Mifune) é o único consenso nas versões. Ele é o assassino que dera cabo do homem, que, na realidade, escoltava sua esposa a cavalo pelos bosques quando foi abordado e atraído para uma emboscada. Tajômaru amarra o samurai e estupra sua esposa, movido por uma lascívia animal que, ao longo das diferentes versões, apresenta nuances que vão da pura bestialida­de primitiva a uma incontrolá­vel paixão à primeira vista. Também saberemos que, numa determinad­a versão, o ladrão acaba se tornando a vítima da situação nas mãos da mesma mulher que violentara. Ela, sabedora da desonrosa situação em que agora se encontra, quer dizer, repudiada pelo esposo e disposta a fugir com o bandido, passa a ser o pivô da desgraça dos três.

Kurosawa de vale desta inovadora estrutura narrativa, escrita por Ryûnosuke Akutagawa, para analisar com lupa as mínimas motivações que regem conceitos morais e éticos em cada indivíduo. As mentiras e omissões a cada nova volta que a trama dá em torno do mote principal revelam almas frágeis, que reiteram uma observação feita a certa altura por um dos personagen­s: “Rashomon é o lugar que o demônio escolheu para se esconder das pessoas”. De fato, a velha propriedad­e é a metáfora absoluta da tempestuos­a e errática existência de cada um. Não à toa ressoaria em obras de gerações posteriore­s. O homem influencia­do pelos westerns de John Ford deixou sua marca em figuras do calibre de Robert Altman, Tarantino e, até mesmo, Nelson Rodrigues – a semelhança da estrutura de Rashomon com Boca de Ouro.

A todo momento, há um laivo de vaidade e soberba em Tajômaru quando ele mesmo decide contar sua versão do estupro. E é essa vaidade que se potenciali­za como tema central de outra obra de Kurosawa, Trono Manchado de Sangue (1957), também relançado em DVD.

No filme, Kurosawa se vale do teatro Nô, com alguma atualizaçã­o deliberada, para recriar a tragédia de Shakespear­e, Macbeth, no Japão, durante as intermináv­eis guerras civis do século 16. A estrutura da peça original foi mantida em sua forma quase total. Por esse motivo, o argumento do filme se torna familiar, embora nos apresente às figuras de dois distintos samurais, que Kurosawa reveste de contradiçõ­es e põe por terra a imagem do guerreiro como apenas uma máquina de matar em nome de seu senhor.

Assim, voltando de uma batalha vitoriosa, Washizu (Mifune, novamente) e Miki deparamse com uma feiticeira que profetiza a ascensão de ambos. Washizu se tornará senhor da segunda maior propriedad­e do feudo, enquanto a Miki caberá administra­r a casa principal e gerar o próximo senhor absoluto daquelas terras. Lady Macbeth, transforma­da em Asaji, esposa de Washizu, tal qual a serpente das escrituras sagradas, atiça a vaidade do esposo, convencend­o-o de que merece uma condição maior até que seu próprio senhor. Após a conhecida conspiraçã­o shakespear­iana, que os levam a assassinar a grande autoridade do feudo, o inferno abre suas portas e o período de paz e tranquilid­ade termina com batalhas fratricida­s em nome da ganância, no primeiro momento, e da extrema loucura, nos momentos finais.

Washizu encontrará seu fim inexorável pelas mãos dos próprios soldados que, cientes da loucura de seu novo amo, rebelam-se na fortaleza e punem o samurai com saraivadas de flechas, enquanto a vítima maldiz seus algozes e expira feito um Calígula, desacredit­ado por seu povo. Yoshiaki, filho de Miki, torna-se o grande senhor e honra a profecia da feiticeira.

Ambos os filmes mostram um Kurosawa atento às inovações técnicas do cinema e como elas influencia­riam a percepção do espectador. Assim, com linguagem alicerçada nos planos longos, contemplat­ivos, contrastad­os com sequências de cortes rápidos, panorâmica­s e movimentos de câmera na mão, Akira Kurosawa sedimentou sua genialidad­e estética em perfeita sintonia com os novos movimentos cinematogr­áficos do Ocidente, que surgiriam ao final daquela década e, pouco depois, prestariam reverência a este homem que mostraria mais de sua versatilid­ade e invenção ao longo das quatro décadas seguintes.

Responsáve­l pela criação do Oscar para melhor filme estrangeir­o, ‘Rashomon’, do diretor japonês Akira Kurosawa, ganha edição definitiva em DVD no Brasil

 ??  ?? Clássico. Toshiro Mifune é o ladrão Tajômaru e Machiko Kyo é Masako em ‘Rashomon’ (acima), de Kurosawa (à dir.), que ganhou o Leão de Ouro em 1950
Clássico. Toshiro Mifune é o ladrão Tajômaru e Machiko Kyo é Masako em ‘Rashomon’ (acima), de Kurosawa (à dir.), que ganhou o Leão de Ouro em 1950
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