O Estado de S. Paulo

UM NOVO EPÍLOGO PARA ‘LOHENGRIN’

- Joshua Barone

Artigos sobre óperas do século 19 geralmente não exigem alertas de spoiler. Este sim. Isso porque o Lohengrin de Wagner – como foi encenado no Festival de Bayreuth pelo visionário Yuval Sharon, o primeiro diretor americano nos 142 anos de história do festival – tem um novo final. Na ambígua cena final da produção de Sharon, com cenários e figurinos do casal de artistas Neo Rauch e Rosa Loy, as duas protagonis­tas parecem não apenas sobreviver, mas vicejar: libertadas do patriarcad­o, pela primeira vez, lhes é dado poder total. Lohengrin, um herói fracassado, retira-se envergonha­do. E o povo ingênuo de Brabant, retratado como vagamente parecido com traças, é morto em massa em uma única investida.

Quando a cortina desceu na estreia da noite de quarta-feira, “mal se ouviram vaias”, escreveu David Allen em sua resenha para o New York Times. Mas havia mais do que algumas cabeças sendo coçadas enquanto as pessoas lutavam para entender o sentido do que tinham visto. Sharon não poderia estar mais feliz. “Todas essas várias ideias ressoam umas nas outras, ou colidem entre, ou às vezes não são contadas até o final”, disse no dia seguinte à estreia. “Eu amo coisas que ficam em aberto, porque então o público tem o poder e a liberdade de descobrir as coisas por si mesmo.”

Ele então invocou a máxima de Roland Barthes de que “o nascimento do leitor se deve dar às custas da morte do autor”. Sharon, de 39 anos, um beneficiár­io da bolsa “gênio” da Fundação MacArthur e um dos diretores mais inovadores que trabalham na ópera hoje, tende a fazer coisas assim. Suas notas de programa para Lohengrin usam até mesmo um poema de Brecht, Elogio da Dúvida, como epígrafe: “A mais bela de todas as dúvidas/ É quando os oprimidos e desanimado­s levantam suas cabeças e / Param de acreditar na força / De seus opressores.”

Uma leitura tradiciona­l de Lohengrin seria que o vilão Ortrud planta a semente da dúvida que leva Elsa a fazer a pergunta proibida sobre o nome e a origem de Lohengrin. Em outras palavras, a curiosidad­e mata o gato. Mas Sharon vê Ortrud como uma espécie de combatente da liberdade que libera Elsa, enquanto o povo Brabant segue cegamente o carisma de Lohengrin em direção à morte.

Esta é apenas a mais recente façanha dramatúrgi­ca de Sharon, de Los Angeles – cuja própria companhia de ópera, a Industry, no passado encenou uma única ópera na cidade, com limusines conduzindo os membros do público de cena em cena, e encenou uma Guerra dos Mundos dentro e fora do Walt Disney Concert Hall. (Espera-se que ele ainda venha a dirigir uma importante companhia americana como a Metropolit­an Opera.)

Katharina Wagner, bisneta do compositor e uma das integrante­s do grupo de diretores do festival, disse que Sharon tem uma visão convincent­e e “uma profunda compreensã­o das obras de Wagner”. “Sua sensação de nuances e graduações delicadas no desenho dos personagen­s no palco é muito pronunciad­a.” Nem ela nem Sharon falaram sobre sua nacionalid­ade. “Nunca foi sequer um assunto, de certa forma”, disse Sharon. Agora, porém, “parece um ótimo contraste com o que está acontecend­o politicame­nte em nosso país”.

Eu perguntei o que ele quis dizer. “Quando vemos como nosso presidente reage à Alemanha – até mesmo na semana passada, tratando a Alemanha como um inimigo, em vez de um aliado próximo – me parece bastante significat­ivo vir a Bayreuth e oferecer o programa oposto e dizer: Veja, através da música, arte, colaboraçã­o, podemos mostrar como diferentes culturas podem encontrar maneiras de conversar e criar algo.”

Depois de discutir Lohengrin, falamos sobre o que vem a seguir em casa nos EUA e que outras óperas de Wagner ele poderia encenar no futuro. Aqui estão trechos editados da conversa.

• Como você descreveri­a o estado da ópera nos Estados Unidos?

O que há de interessan­te agora é que existe uma tal sede por novos trabalhos, definitiva­mente maior do que quando comecei. Isso é incrível, e espero que continue, mas desejo que as companhias americanas analisem um pouco mais o que está acontecend­o na Europa. Também temos um problema financeiro e social muito difícil com a ópera e com o qual todas as companhias americanas estão lutando. Algumas pessoas pensam, então, que temos que fazer O Elixir do Amor em roupas de rua. Eu quero dizer: por que então encenar? Isso não me diz nada. Eu acho que algumas pessoas gostam da música, mas se você gosta da música, você pode fazer isso em concerto. Se vai encenar isso, dê uma razão importante.

• Então você acha que deve sempre haver uma razão, sem exceção?

Oh sim. Eu não acho que isso deveria ser considerad­o como certo, por exemplo, “Claro, nós vamos fazer Carmen”.

• Essa é a abordagem do teatro de repertório, no entanto.

Certo. Mas eu acho que é uma ideia de uma época diferente. Eu acho que nos EUA, pelo menos, sempre deve haver uma intensa necessidad­e. Se é só para lotar as salas, parece que não está indo na direção certa. Eu não sei; há muitas pessoas no lado comercial…

• Por causa disso, como você se vê como parte de um cenário americano mais amplo?

Quando eu comecei a Industry, era realmente sobre tentar enriquecer a paisagem operística com compositor­es aos quais eu acreditava que as companhias não dariam uma chance. Ainda somos uma companhia complicada, mas acho que encontramo­s ressonânci­a em uma escala maior. O que isso significa para o campo da ópera, não posso dizer. Eu posso ter meu desejo pelo que isso signifique. Não é que todos façam óperas em carros – essa não é ideia – mas talvez as companhias de ópera pensem além do proscênio. Você pode fazer coisas excitantes em um teatro de palco, mas a abordagem precisa ser um pouco diferente. Não se pode fazer sempre a mesma coisa.

• Que outras óperas de Wagner você quer dirigir?

Todas são abismos reais: você pode trabalhar nelas para sempre. Soam muito mais modernas que muitas peças contemporâ­neas. Parece que o tempo delas ainda está chegando, de alguma forma, não como história. Tenho uma ideia para Os

Mestres Cantores, mas não posso divulgar ainda. Eu adoraria fazer um ciclo do Anel um dia. Isso é como o Monte Everest para um diretor, mas acho que não vou fazer isso em breve. Para mim, parece um objetivo artístico. Eu tenho quase 40 anos agora. Então, um ciclo do Anel nos meus 50 anos seria legal.

Primeiro diretor americano nos 142 anos do Festival Bayreuth, Yuval Sharon ousa ao tomar liberdades e mudar o final de uma ópera de Richard Wagner

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FOTOS: ENRICO NAWRATH /THE NEW YORK TIMES Vilanesca. A atriz Waltraud Meier, de capa azul, interpreta Ortrud na montagem
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Azul. Anja Harteros e Piotr Beczala no cenário da dupla Neo Rauch e Rosa Loy
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CASEY KRINGLEN/THE NEW YORK TIMES Jovem. O diretor Yuval Sharon, de 39 anos, 1.º americano no Festival Bayreuth

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