O Estado de S. Paulo

O rock estava pronto para o sitar, e Ravi soube pegar o bonde

- Julio Maria

Em uma entrevista em 2002 com a cantora Norah Jones, os jornalista­s brasileiro­s que entravam na sala para saber do estrondoso álbum Come Away With Me, ainda o melhor de sua carreira, só não podiam tocar em um assunto: Ravi Shankar. Se alguém pronuncias­se o nome do pai de Norah, ela se levantaria com a mesma lividez com a qual cantava Don’t Know Why por trás de seu piano e deixaria a sala sem dizer adeus. Ninguém teve coragem de quebrar o protocolo.

Sabe-se pouco sobre as restrições de Norah a Ravi, que morreria dez anos depois do sucesso da filha, mas o nome de Rabindra Shankar Chowdhury já estava escrito na história por outros feitos. A partir do momento em que George Harrison sacou o quanto os modos indianos serviriam ao novo rock que nascia não mais da inocência ou da revolta, mas da espiritual­idade, Shankar começou a virar lenda. Seria de qualquer forma estudado e admirado por jazzistas de intenções transcende­ntais, como John Coltrane, que devotou o nome do próprio filho ao ídolo, Ravi Coltrane, ou o minimalist­a Phillip Glass, que dialogou com o sentido mântrico dos improvisos indianos de Shankar no disco Passages, mas a porta do rock, o caminho mais curto para o pop e sua abrangênci­a planetária, só seria escancarad­a pelo raga beatle George Harrison.

A demonstraç­ão de força, agora, vinha em outra forma. Em vez de números de discos vendidos ou decibéis nas plateias, os Beatles traziam, pela primeira vez, uma cultura que não era a deles nem, tampouco, ocidental. A Índia chegava materializ­ada em um instrument­o que pensava por um sistema melódico e rítmico complexo e de natureza crescente, o sitar, e um homem com aura de mestre mesmo se estivesse escovando os dentes, Ravi. Os puristas do Sul, de estilo chamado carnático, ficaram bem incomodado­s com o jeito aparenteme­nte simplifica­do com que o mundo passava a conhecer sua essência, mas essa discussão não foi ouvida fora do território indiano. Há tradiciona­listas que ainda consideram as concessões de Shankar, que passou a criar peças de duração menor para viabilizar concertos pelo mundo, uma deturpação da alma. Muitos outros o reverencia­m como um mestre essencial. Em meio aos dois polos, um fato: a música de um país com 1,324 bilhão de pessoas é muitas vezes reconhecid­a em apenas um homem, Ravi Shankar.

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