A terra vista por dentro
“Na Lapa Bonita a gente fica até encabulado”, seu Getúlio disparou, me livrando da tarefa de achar adjetivos. Nada objetivo, mas de uma precisão notável. É só assim mesmo que dá para se sentir na escuridão e no silêncio completos, quando as lanternas iluminam os espeleotemas que crescem por todos os lados nesta gruta do Parque Nacional Cavernas do Peruaçu: com vergonha de comentar qualquer coisa, porque toda fala parece tolice diante de tanto detalhe e tanta perfeição.
O Peruaçu é o vale do rio de mesmo nome, na margem esquerda do Rio São Francisco, do qual é afluente. A área de 56,4 mil hectares virou parque nacional em 1999. A visitação começou em meados de 2014, com a infraestrutura sendo implantada de fato em 2017. Isso falando da visitação turística, claro. Porque a população local conhece de cor as trilhas, os bichos, o clima característico do Polígono das Secas, a fauna, a vegetação que mistura espécies de caatinga, cerrado e Mata Atlântica.
É essa população que agora está mobilizada em torno de um objetivo: tornar o parque um patrimônio da Unesco. Se tudo sair conforme o planejado, será o primeiro com status de patrimônio misto no Brasil: natural, pelo conjunto de cavernas abrigadas em seu interior – são 140 catalogadas e 170 estimadas em toda a região –, e cultural, por causa das pinturas rupestres que comprovam a presença humana na área há pelos menos 12 mil anos.
Durante a minha visita, na primeira semana de junho, uma comissão de avaliadores do Iphan (Instituto Nacional do Patrimônio Histórico) também esteve no parque para uma inspeção que é um dos passos decisivos para a candidatura formal a Patrimônio da Unesco.
“As impressões foram as melhores possíveis. Desconhecia a monumentalidade das formações rochosas e a riqueza das pinturas rupestres existentes no local”, disse ao Estado um dos integrantes da comissão, o diretor do Departamento de Cooperação e Fomento do Iphan, Marcelo Brito. A Gruta do Janelão, cartão-postal do parque, deixou os integrantes da comissão impressionados.
Comunidade. Getúlio Bispo da Rocha e eu engatamos a conversa lá do começo acomodados à grande mesa de madeira de Rita de Cássia Lima. Ela é dona da pousada e restaurante Portal do Peruaçu; ele tem uma vida inteira na mineração nestas serras e, aos 72 anos, estuda para ser guia. O almoço na presença de ambos, ao redor da mesa cheia – carne de sol, mandioca, abóbora, feijão tropeiro, feijão em caldo, arroz, batata frita, salada, não existe mesa mineira com pouca comida –, resumia num feliz acaso o que é uma viagem por estas bandas, no norte de Minas Gerais. Dias de imersão na natureza e numa vida rural, calmaria, muita prosa e muita comida. Hospitalidade sem frescura sob comando de gente da terra.
Apesar dos incentivos institucionais diversos que a área vem recebendo – as prefeituras dos municípios de Itacarambi e Januária dão suporte à candidatura a patrimônio; o ICMBio cuida da conservação e da infraestrutura; o Sebrae coloca dinheiro em treinamentos e divulgação –, o tipo de turismo que começa a se desenvolver no Peruaçu é genuinamente de base comunitária. Moradores começam a abrir pousadas domiciliares que são as opções de hospedagem literalmente aos pés do parque, na comunidade Fabião. Cozinham em seus pequenos restaurantes. Guiam passeios.
Atualmente, são oito as cavernas abertas aos turistas. Um novo roteiro, o circuito Arco do André, está para estrear ainda em agosto, segundo o espeleólogo Leonardo Giunco, conselheiro do Parque Nacional como representante da Sociedade Brasileira de Espeleologia. “É um trajeto bem selvagem pelo cânion, com duração de um dia inteiro e que exige mais preparo físico”, contou. “O caminho margeia o Rio Peruaçu e passa por dentro de duas cavernas que ainda não são abertas ao público, Cascudos e Troncos.” A nova rota já foi homologada pelo ICMBio.
O número de visitantes no Peruaçu aumentou de 500, em 2014, para 6.890, em 2017. Segundo o chefe do parque, Rafael Pereira Pinto, a previsão é de que o total chegue a 10 mil neste 2018 e que, no futuro, estabilize em 20 mil turistas anuais. O que daria uma média de 50 visitantes a cada dia do ano.
Melhor que sejam assim, poucos. Lotação não combina com o tempo lento e a conexão com a natureza que o Peruaçu propõe. Reserve ao menos três dias inteiros para caminhar em busca dos tesouros da região. Seu Getúlio garante que eles existem, inclusive, no sentido literal: “Antigamente esse lugar tinha dois costumes: fazer feitiçaria para casamento e enterrar dinheiro”. VIAGEM A CONVITE DO SEBRAE MINAS