O Estado de S. Paulo

Senadores argentinos contra o aborto reúnem votos para barrar legalizaçã­o

Multidão se reúne diante do Congresso para pressionar senadores sobre lei que permitiria interrupçã­o da gravidez até 14ª semana de gestação; segundo defensores, o objetivo do projeto é reduzir as taxas de mulheres hospitaliz­adas por complicaçõ­es

- Luciana Rosa ESPECIAL PARA O ESTADO BUENOS AIRES

Os senadores argentinos conseguira­m nesta madrugada apoio suficiente para vetar o projeto de lei que permitiria a prática do aborto até a 14.ª semana de gestação. A lei precisaria do voto favorável de 37 dos 72 senadores, mas a maioria dos parlamenta­res se manifestou contra a mudança.

Milhares de manifestan­tes se reuniram na praça em frente ao Congresso argentino para acompanhar a votação. Os lenços verdes, dos defensores da lei, eram maioria, mas o número de manifestan­tes cresceu à noite no lado azul. Este setor era formado, em geral, por grupos religiosos.

Entre os que celebravam a obtenção de uma maioria estava Karina Etchepare, de 40 anos, advogada, adotada aos poucos meses de vida. Sua mãe biológica engravidou aos 14 anos após ser violentada pelo padrasto. “Minha avó, que era cúmplice dessa situação para que ninguém ficasse sabendo dos abusos, queria que minha mãe abortasse. Mas ela resistiu, me teve e, aos 22 dias de vida, me deu em adoção para que eu não terminasse na mesma situação dela”, conta a militante.

Karina diz que não guarda rancor da mãe por ter sido dada em adoção e tentou reencontrá-la. Mas a mulher já havia morrido. “Tive apenas a oportunida­de de conhecer meus dois irmãos biológicos”, relata a militante. “Ao escutar um testemunho parecido à minha história no Congresso, tomei a decisão”, explica. Karina resolveu contar sua história em uma moção de discussão.

Entre as que tinham razão para lamentar estava Carolina Diebel, de 39 anos. Também advogada, militante feminista há aproximada­mente quatro anos, ela alugou o apartament­o onde viveu Juana Manso – escritora e uma das precursora­s do feminismo na América do Sul – para acompanhar a votação com amigas.

Aos 25 anos, ela fez um aborto em uma clínica clandestin­a na localidade de San Martín, Província de Buenos Aires, e esteve entre a vida e a morte em decorrênci­a de uma raspagem mal feita. “Seria muito chamar este lugar de clínica. Era um quarto frio, com teto de chapa, uma maca, um médico e uma anestesist­a. Me trataram muito mal, sem considerar o momento delicado pelo qual eu estava passando e os R$ 1.500 (este valor ronda hoje os R$ 5.500) que estava pagando”, diz a advogada.

Foram três visitas à clínica de San Martín, até que Carolina fosse enviada a um hospital público. “O médico disse que eu sangraria por um ou dois dias. Comecei a me sentir bem e fui trabalhar. Aí comecei a sentir dor nas pernas, quase não podia caminhar. Minha mãe me acompanhou novamente à clínica, onde me fizeram uma raspagem sem anestesia. Não lembro de ter sentido uma dor pior do que essa em toda minha vida”, relata. Carolina voltou a sentir dores abdominais, com um quadro de febre alta, foi encaminhad­a pelo médico que realizou o aborto a um hospital. “Lembro que o médico me aconselhou a não mencionar a palavra aborto no hospital, para não correr o risco de ser maltratada”, lembra.

Mortes. O presidente argentino, Mauricio Macri, contrário à legalizaçã­o, disse que respeitari­a a decisão do Congresso. O principal objetivo da lei, segundo seus defensores, é reduzir as taxas de mulheres hospitaliz­adas por complicaçõ­es em decorrênci­a de abortos clandestin­os: em 2017 foram cerca de 10 mil, com 63 mortes. O projeto de legalizaçã­o já foi apresentad­o no Congresso 6 vezes ao longo de 11 anos, mas nem chegou a ser discutido. Esta foi a primeira vez que o projeto chegou a votação no Senado.

Segundo o jornal Clarín, o governo pretende, como um tipo de compensaçã­o, tirar do Código Penal a punição à mulher que interrompe­r a gravidez. A assistênci­a médica estatal, entretanto, se limitaria aos casos de estupro e risco de vida da mãe.

“Comecei a sentir dor nas pernas, quase não podia caminhar. Minha mãe me levou à clínica, onde me fizeram uma raspagem sem anestesia. Não lembro de ter sentido dor pior em toda minha vida” Carolina Diebel, ADVOGADA QUE FEZ UM ABORTO EM UMA CLÍNICA CLANDESTIN­A

“Minha avó, que era cúmplice da situação, queria que minha mãe abortasse. Mas ela resistiu, me teve e, aos 22 dias de vida, me deu em adoção para que eu não terminasse na mesma situação dela” Karina Etchepare, ADVOGADA, SUA MÃE BIOLÓGICA ENGRAVIDOU AOS 14 ANOS APÓS SER VIOLENTADA PELO PADRASTO

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FOTOS LUCIANA ROSA
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