O Estado de S. Paulo

Morre V. S. Naipaul, Nobel de Literatura

Vencedor do Nobel de Literatura de 2001, escritor colecionou prêmios e elogios na mesma medida que inimigos

- Dwight Garner THE NEW YORK TIMES

V. S. Naipaul, escritor premiado com o Nobel de literatura de 2001 e que morreu aos 85 anos no sábado, em Londres, tinha tantos dons como autor – flexibilid­ade, inteligênc­ia, um olhar impiedoso para os detalhes – que ele podia aparenteme­nte fazer o que desejasse. E o que ele queria, ficou claro, era raramente agradar a alguém além de si mesmo. Em sua óbvia grandeza, nas duras verdades que tratou, Naipaul atraiu e repeliu.

Ele era um saco ambulante de contradiçõ­es, de certa forma o escritor arquetípic­o do século 20, mutante e migratório. Sua vida foi marcada por uma série de viagens entre o mundo antigo e o novo. Era um mediador legal e às vezes irritado entre os continente­s. Indígena por descendênc­ia, de origem trinidadia­na, Naipaul frequentou Oxford e morou em Londres, onde passou a usar ternos elegantes e a se movimentar nos círculos sociais de elite. “Quando falo em ser exilado ou refugiado, não estou apenas usando uma metáfora”, disse ele. “Estou falando literalmen­te.”

Seu livro inovador, depois de três obras cômicas ambientada­s no Caribe, foi Uma Casa para o Sr. Biswas (1961), obra-prima composta quando Naipaul tinha 29 anos. Ele não perdeu nada de seu humor astuto. É sobre um homem, baseado em seu próprio pai, que começa a vida como pintor de anúncios publicitár­ios em Trinidad e, de uma forma improvável, torna-se jornalista.

Entre seus livros mais ricos e eminenteme­nte reeditávei­s, depois de Uma Casa para o Sr. Biswas, inclui Num Estado Livre, um conjunto intimista de histórias relacionad­as ao colonialis­mo e aos caprichos do poder. Situado no Egito, América, África e Inglaterra, ganhou o Booker Prize em 1971. Guerrilhei­ros foi chamado de “provavelme­nte o melhor romance de 1975”. É o livro mais propulsivo de Naipaul. Situado em um país caribenho sem nome, onde o ar é denso com o domínio britânico pós-colonial, oferece um retrato complexo dos modos e motivos dos revolucion­ários do Terceiro Mundo. É uma meditação misteriosa sobre o deslocamen­to – você nunca sabe para onde o romance está indo. Seu autor diria mais tarde: “O enredo é para aqueles que já conhecem o mundo; a narrativa é para aqueles que querem descobrila”. Seu último grande romance, ambientado na África Central pós-colonial, pode ter sido Uma Curva no Rio (1979).

É um erro resumir qualquer escritor talentoso, talvez especialme­nte Naipaul, à sua visão política. Mas os temas políticos se sobressaír­am. Sua defesa instintiva dos locais que levaram vidas restritas ao colonialis­mo entrou em conflito esmagador com sua visão sombria de suas sociedades. Naipaul era pessimista quanto à ideia de mudança política radical. Uma sensação delicada de vergonha atravessou sua ficção. “Minha maior superação foi ter nascido em Trinidad Tobago”, disse ele, certa vez. “Aquele resort maluco! Como se pode ter escrita séria em um lugar como aquele?”. Ele pode ter ganho o Nobel em

2001, mas, desde o início, foi um laureado pela humilhação.

Na década de 1960, começou a escrever sobre suas viagens ao mundo – escreveu sobre a Índia

(Uma Área das Trevas, Índia: Uma Civilizaçã­o Ferida); Argentina, Trinidad e Congo (O Retorno de Eva Perón); e Indonésia, Irã, Paquistão e Malásia (Entre os Fiéis). Ele percorreu a América, ao sul da linha Mason-Dixon, em busca de um livro revelador intitulado

Uma Virada ao Sul, no qual comentou: “Não há paisagem como a da nossa infância”. Naipaul foi invejado por seus sucessos e estava ciente do racismo – certa vez, reescreveu o slogan racista “Keep Britain White”, adicionand­o uma vírgula: “Mantenha a Grã-Bretanha, branco”.

As visões antipática­s de Naipaul sobre a vida pós-colonial fizeram dele um dos escritores mais controvers­os de sua época. Nenhum ocidental branco poderia ter falado como ele, que escreveu sobre o “primitivis­mo” e a “barbárie” das sociedades africanas. E que registrou a falta de encanament­o na Índia: “Eles defecam nas colinas; eles defecam nas margens do rio; eles defecam nas ruas”.

Naipaul era detestado pelos intelectua­is do Terceiro Mundo, que o chamavam, entre outras coisas, de “restaurado­r dos reconforta­ntes mitos da raça branca” (Chinua Achebe). Fez inimigos tão facilmente como se toma chá. Disse, certa vez: “Num texto, basta um ou dois parágrafos para saber se o autor é uma mulher”. Naipaul abusou fisicament­e de Margaret Murray, sua amante de muitos anos. Segundo ele, o bindi (marca de tinta ou mesmo pequena joia) colocado na testa de uma mulher significa: “Minha cabeça está vazia”.

Mas tinha também defensores fervorosos. Ian Buruma, editor do The New York Review of Books, considerou um erro ver Naipaul como “um homem negro imitando os preconceit­os dos imperialis­tas brancos”. “A raiva de Naipaul não é o resultado de ser incapaz de sentir a situação do nativo; pelo contrário, ele está zangado porque sente isso com tanta intensidad­e”.

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CHRIS ISON/REUTERS – 11/10/2001 Contradiçõ­es. Por suas ideias e duras verdades que tratou, atraiu e repeliu leitores

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