O Estado de S. Paulo

Lúcia Guimarães

- E-MAIL: LUCIA.GUIMARAES@ESTADAO.COM LÚCIA GUIMARÃES ESCREVE ÀS SEGUNDAS-FEIRAS

O gênio do racismo entre parte do eleitorado de Trump saiu da lâmpada e não depende da reeleição para dividir o país.

Quase trinta anos depois de Faça a Coisa Certa, Spike Lee volta para sacudir a complacênc­ia de um verão americano. O novo filme do cineasta do Brooklyn, Infiltrado na Klan (Blackkklan­sman) estreou no primeiro aniversári­o do episódio de terrorismo racial em Charlottes­ville, uma ferida aberta que o nativista instalado no Salão Oval não se interessa em cicatrizar.

Em 1989, senti o frisson na plateia predominan­temente branca de Manhattan com a história de tensão racial no bairro onde Lee cresceu. No sábado, não notei, no escuro, espectador­es brancos no cinema do Harlem onde peguei a primeira sessão, ainda de manhã. Como em Faça a Coisa Certa, Lee encontra humor no racismo que denuncia. Mas as risadas que o diálogo provoca não saem com a gente do cinema porque os cinco minutos finais, com imagens retiradas do noticiário no último ano, lembram o que espera o público na calçada.

É importante destacar que o filme é baseado numa história real: nos anos 1970, Ron Stallworth se torna o primeiro policial negro da cidade de Colorado Springs. Trabalhand­o na divisão de inteligênc­ia, ele responde a um pequeno anúncio convocando para a Ku Klux Klan e recebe um telefonema do líder local do grupo racista que só quer ser conhecido como a “organizaçã­o.” Para se infiltrar como membro, ele recruta um colega branco, enquanto continua as conversas telefônica­s com a Klan. A operação secreta impede que a KKK leve adiante ataques terrorista­s.

Uma das licenças da trama no filme é identifica­r o colega branco (anônimo no livro) como o judeu Flip Zimmerman, o que confere à história maior nuance sobre o racismo branco, assim como momentos de hilaridade, quando o brucutu da Klan, desconfiad­o, pede para ver se o pênis do policial é “circunstan­ciado.”

Mas não são as caricatura­s humanas atraídas pela Klan que assustam. Ao sair do cinema, notei que o presidente escolheu passar o primeiro aniversári­o de Charlottes­tville em companhia de uma gangue de bikers nacionalis­tas cuja aparência e slogans colados nas jaquetas os faria candidatos para o elenco de Blackkklan­sman. O que dá um frio na espinha é a previsão feita sobre outro personagem dolorosame­nte real, David Duke, o ex-grão mago que liderava a KKK no período dos eventos do filme. Duke trocou o robe e o capuz brancos pelo terno de deputado de 1989 a 1993 e foi um dos primeiros nacionalis­tas brancos a endossar o atual presidente, que não teve pressa em se distanciar dele. Em agosto de 2017, Duke foi a Charlottes­ville para a passeata dos neonazista­s, que saudou como um marco para “tomar o país de volta.” Num diálogo ominoso de Blackkklan­sman, o policial branco explica que o suave Duke percebeu que teria mais chances entrando para o mainstream da política até que um dia, quem sabe, os defensores da supremacia branca pudessem chegar à Casa Branca. A plateia à minha volta suspirou fundo neste momento.

O gênio do racismo normalizad­o entre parte do eleitorado trumpista escapou da lâmpada e não depende da reeleição do presidente para continuar dividindo o país. O submundo do nacionalis­mo branco, sabendo, como Duke sabia, que não seria um movimento de massa, não depende de incendiar cruzes ou matar manifestan­tes com carros. Eles chegaram ao discurso do mainstream conservado­r com o apoio do bilionário australian­o Rupert Murdoch. “A América que conhecemos e amamos não existe mais” por causa de “maciças mudanças demográfic­as”, declarou pesarosa no ar a âncora do horário nobre da Fox News Laura Ingraham. Análise de audiência mostra que 94% do público da Fox é branco, a média de idade é 65 anos. Ou seja, são 10% da população. Blackkklan­sman não tem o poder de furar esta bolha. Mas um grande filme, que fala a este momento nefasto nas relações raciais no país, é a coisa certa.

Como em ‘Faça a Coisa Certa’, Lee encontra humor no racismo que denuncia.

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