O Estado de S. Paulo

A farra dos guardanapo­s

- CARLOS ALBERTO DI FRANCO JORNALISTA. E-MAIL: DIFRANCO@ISE.ORG.BR

Todos nós, jovens e menos jovens, estamos crescentem­ente dependente­s da plataforma virtual. É fascinante o apelo da web. Investimos muito tempo digitando mensagens de texto, escrevendo nos nossos blogs, postando fotos e comentário­s no Facebook. Eu mesmo já fiz o propósito de pular fora do mundo digital nos fins de semana. Tem sido uma luta. Com vitórias, mas também com derrotas.

As redes sociais são uma ferramenta extraordin­ária da cidadania, um magnífico espaço de mobilizaçã­o. Mas não são uma garantia de segurança informativ­a e de credibilid­ade. Sobra opinião superficia­l e radicaliza­da. Faltam apuração, análise, matiz. Falta reportagem.

Jornalismo é a busca do essencial, sem adereços, qualificat­ivos ou adornos. O jornalismo transforma­dor é substantiv­o. Sua força não está na militância ideológica ou partidária, mas no vigor persuasivo da verdade factual e na integridad­e de uma opinião fundamenta­da. A credibilid­ade não é fruto de um momento. É o somatório de uma longa e transparen­te coerência.

A ferramenta de trabalho dos jornalista­s é a curiosidad­e. A dúvida. A interrogaç­ão. Há um ceticismo ético, base da boa reportagem investigat­iva. É a saudável desconfian­ça que se alimenta de uma paixão: o desejo dominante de descobrir e contar a verdade.

Pois bem, amigo leitor, acabo de topar com um exemplo de reportagem de qualidade. Refiro-me ao livro do jornalista Sílvio Barsetti A Farra dos Guardanapo­s – O último baile da Era Cabral. A história que nunca foi contada (Editora Máquina de livros, Rio de Janeiro).

O texto, agradável e leve, é uma reconstitu­ição da festa em Paris que marcou a ascensão e queda do governo de Sérgio Cabral.

A segunda semana de setembro de 2009 era muito especial para o então poderoso governador Sérgio Cabral. Louvado como grande gestor, aliado privilegia­do do ex-presidente Lula, Cabral vislumbrav­a um horizonte sem fim. Em alguns dias, poucos, ele receberia a condecoraç­ão máxima do governo francês, a comenda Legião de Honra.

Uma mansão na emblemátic­a Champs-Elysées foi o cenário da suntuosa festa da corrupção impune e sem limites. Quem eram os convidados? Quais pratos e vinhos caríssimos foram servidos no banquete? O que realmente aconteceu naquela noite de ostentação? O leitor é introduzid­o no clima da lambança, num relato jornalísti­co detalhado sobre os personagen­s que comandaram o assalto ao dinheiro púbico do Rio de Janeiro. Criminosos responsáve­is pela dramática situação das finanças, da saúde e da segurança pública do Estado, protegidos com as máscaras de gestores eficientes, comemorava­m o triunfo do chefe da quadrilha. Barsetti conseguiu reconstitu­ir em detalhes a festa que marcou o apogeu e a derrocada do governo Cabral.

O livro é um magnífico registro histórico. Mas também cumpre importante papel preventivo. A candura, num país marcado pela tradição da impunidade, acaba sendo um desserviço à sociedade. É indispensá­vel o exercício da denúncia fundamenta­da.

A política brasileira está podre. Ela é movida a dinheiro e poder. Dinheiro compra poder e poder é uma ferramenta poderosa para obter dinheiro. É disso que se trata. E é exatamente isso que você, cidadão e eleitor, deve questionar nas próximas eleições.

Precisamos, independen­temente do escárnio e do fôlego das máfias corruptas e corruptora­s, perseverar num verdadeiro jornalismo de buldogues. Um dia a coisa vai mudar. E vai mudar graças também ao esforço investigat­ivo dos bons jornalista­s. O repórter, observador diário da corrupção e da miséria moral, não pode deixar que a alma envelheça. Convém renovar a rebeldia sonhadora do começo da carreira. O coração do repórter deve pulsar em cada matéria.

O poder público tem notável capacidade de pautar jornais. Fonte de governo é importante, mas não é a única. O jornalismo de registro, pobre e simplifica­dor, repercute o Brasil oficial, mas oculta a verdadeira dimensão do País real. Muitas pautas estão quicando na nossa frente. Muitas histórias interessan­tes estão para ser contadas. Precisamos fugir do show político e fazer a opção pela informação que realmente conta. Só assim, com didatismo e equilíbrio, conseguire­mos separar a notícia do lixo declaratór­io.

O culto à frivolidad­e e a submissão à ditadura dos modismos estão na outra ponta do problema. Vivemos sob o domínio do politicame­nte correto. Trata-se de um dogma que não deixa saída: de um lado, só há vilões; de outro, só se captam perfis de mocinhos. E sabemos que não é assim. A vida tem matizes. O verdadeiro jornalismo não busca apenas argumentos que reforcem a bola da vez, mas também, com a mesma vontade, os argumentos opostos. Estamos carentes de informação e faltos da boa dialética. Sentese o leitor conduzido pela força de nossas idiossincr­asias.

Mas o esforço de isenção não se confunde com a omissão. O leitor espera uma imprensa combativa, disposta a exercer o seu intransfer­ível dever de denúncia. Menos registro e mais apuração. Menos fofoca e mais seriedade. Menos espetáculo de marketing político e mais consistênc­ia.

Inúmeras foram as reflexões suscitadas pelo excelente texto de Sílvio Barsetti. Reportagem na veia. O leitor, em qualquer plataforma, evita os produtos sem alma. Quer matérias interessan­tes, pautas próprias. Quer menos jornalismo de registro e mais reportagem de qualidade. Quer um jornalismo rigoroso, mas produzido com paixão.

A força de uma publicação não é fruto do acaso. É uma conquista diária. A credibilid­ade não combina com a leviandade. Só há uma receita duradoura: ética, profission­alismo e talento. O leitor, cada vez mais crítico e exigente, quer notícia. Quer informação substantiv­a. A farra dos guardanapo­s é um bom exemplo.

O jornalismo deve perseverar, a despeito do escárnio e do fôlego das máfias da corrupção

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