Ouvidoria diz que há excessos na polícia de SP
Órgão analisou 756 dos 940 óbitos causados pelas corporações do Estado em 2017, ano com recorde histórico desse tipo de ocorrência; em 1/4 dos registros sequer houve confronto. Secretaria de Segurança Pública afirma ter ações para reduzir casos
Em 74% das ocorrências nas quais policiais mataram civis em São Paulo em 2017 houve excessos, segundo a Ouvidoria da Polícia do Estado. Foram analisados 639 casos, com 756 mortos, de supostos confrontos. Foi o pior ano de letalidade policial da série histórica. O governo contesta e aponta redução.
A Ouvidoria da Polícia do Estado de São Paulo identificou excessos em 74% das ocorrências em que policiais mataram civis durante supostos confrontos em 2017, ano em que a letalidade policial foi a maior da série histórica, iniciada em 2001. A constatação foi divulgada ontem em relatório do órgão, que analisou boletins de ocorrência, laudos técnicos produzidos nos locais desses casos e os procedimentos e métodos padrões para ocorrências de risco. Em um quarto dos registros, sequer foi constatado confronto entre os agentes e os suspeitos.
O órgão independente, que cuida de queixas e do monitoramento de ações policiais, analisou 639 ocorrências, que resultaram em 756 mortes de civis. Não alcançou todos os casos, uma vez que foram 940 em 2017. Dos casos analisados, 48% apresentaram excessos na legítima defesa. Nesses, a Ouvidoria confirmou que houve confronto armado entre policiais e criminosos, mas indícios como disparos pelas costas e na cabeça apontam força excessiva de órgãos de segurança.
Em outros 26%, a instituição identificou excessos em casos sem confronto armado, ou seja, a vítima estava desarmada, portava simulacro ou arma branca, como facas. Nos 26% restantes, não foi caracterizado uso inadequado da força. A Secretaria de Segurança diz ter ações para reduzir casos (veja ao lado).
Ainda segundo a Ouvidoria, a alta na letalidade não pode ser atribuída a uma maior violência por parte do crime organizado. Isso porque no ano passado apenas sete casos envolveram ocorrências graves contra quadrilhas fortemente armadas. “Representa 1% do total. Na maioria das vezes, a polícia estava melhor armada do que as vítimas”, disse o ouvidor, Benedito Mariano. Das 1,9 mil armas apreendidas, a mais comum era a pistola .40 (1.057 apreensões), seguida pelo revólver calibre 38 (385 ) e o revólver calibre 32 (89). Foram apreendidos ainda 63 fuzis 5.56 e 27 fuzis Imbel IA2, além de 63 submetralhadoras Famae MT40.
A maioria das mortes (93%) foi cometida por PMs. Na corporação, é o 1.º Batalhão de Choque, a Rota, o responsável pela maior quantidade de óbitos de suspeitos, com 68 no ano passado. Na sequência, com 21 casos, vêm o 41.º Batalhão, de Santo André, e o 16.º, do Rio Pequeno, com 18 vítimas.
Recomendações. O relatório traz 14 recomendações à SSP e ao governo do Estado. Entre elas está reativar a Comissão Especial para a Redução da Letalidade – grupo da secretaria com participação da sociedade civil para monitorar as ocorrências –, fortalecer a cultura de policiamento preventivo e comunitário e difundir a filosofia do método Giraldi – método de tiro defensivo para proteger o policial e reduzir a letalidade, parte do treinamento das corporações paulistas desde 1998. Além disso, sugere criar uma disciplina sobre estereótipos de suspeitos e discriminação social e racial nas academias de polícia.
Para a diretora executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Samira Bueno, o relatório tem, primeiro, papel importante de dar transparência às ações policiais. “Estudos como esse reforçam a vocação da Ouvidoria no caminho de fazer com que a polícia funcione melhor. Assim, também é necessário que essas informações cheguem ao Ministério Público e sejam cobradas na Justiça.”
Ela diz que, “sob qualquer parâmetro, as mortes mostram um quadro grave e inaceitável”. A pesquisadora afirma ainda que o agente, ao atuar fora da lei, se expõe a riscos da violência e da punição, seja legal, seja de membros do crime organizado motivados por vingança.
Um caso. A tatuagem que o ambulante Lucas Nogueira, de 23 anos, traz no braço com o nome do irmão Luan sempre motiva questionamentos quando ele é parado para revistas policiais em Santo André. “Quando falo que é por causa do meu irmão, que foi morto pela polícia, os policiais sempre me xingam, dizem que ele era noia. Mas não tenho medo. Ainda tenho a esperança de ver quem fez isso com ele ser preso”, disse.
O cabo que matou Luan, de 14 anos, no Parque João Ramalho, estava atrás de uma moto roubada quando, em novembro do ano passado, entrou em uma viela e se deparou com um grupo próximo a um veículo. O PM diz que foi alvo de disparos antes de atirar e matar o adolescente. Testemunhas negam e dizem que o policial, denunciado este ano por homicídio culposo, já entrou atirando no local. Nenhuma arma foi encontrada.
“Há uma cultura histórica em atuar mais para o flagrante delito do que na prevenção. É preciso que se reforcem os modelos comunitários e preventivos para transformar o comportamento da polícia”, acrescenta Benedito, que assumiu como ouvidor em fevereiro. Ele já havia sido o primeiro a ocupar o cargo, entre 1996 e 2000.