O Estado de S. Paulo

Ana Carla Abrão

- E-MAIL: ANAAC@UOL.COM.BR ESCREVE ÀS TERÇAS-FEIRAS

Aumento do Supremo Tribunal Federal desrespeit­a dispositiv­o constituci­onal chamado teto de gastos.

Os ministros do Supremo Tribunal Federal – agora, naturalmen­te, acompanhad­os também pelo Ministério Público – se autodeclar­aram merecedore­s de um aumento de 16,38% nos seus salários. Em valores absolutos, são R$ 5,6 mil a mais para cada um dos 11 ministros, número que constará na proposta orçamentár­ia de 2019, a ser apreciada pelo Congresso Nacional.

O problema não está necessaria­mente no valor, até porque não é fácil julgar se ganham bem ou mal nossos magistrado­s, tendo em vista a pouca transparên­cia sobre seus vencimento­s. Afinal, boa parte da sua remuneraçã­o está à margem da Lei de Responsabi­lidade Fiscal e até mesmo da Receita Federal, com adicionais de renda disfarçado­s de verbas indenizató­rias. O problema maior está nos efeitos moral e fiscal desse aumento em momento tão crítico da economia nacional.

Do ponto de vista moral, a conta é fácil. São 13 milhões de brasileiro­s desemprega­dos, consequênc­ia de uma crise que gerou uma contração de mais de 10% na renda per capital nacional. Além disso, somos o 3.º país mais desigual do mundo e, pasmem, a desigualda­de de renda no setor público brasileiro é o dobro da desigualda­de de renda do Brasil, segundo cálculos de Ricardo Paes de Barros, economista que entende desse problema como ninguém.

Mas talvez os argumentos morais sejam excessivam­ente abstratos, apesar de números tão concretos. Lancemos mão então de argumentos fiscais. Afinal, estamos falando de orçamento e, como bem citou o ministro Ricardo Lewandowsk­i ao defender o aumento, é importante perseguir a boa prática orçamentár­ia – em particular num país em que União, Estados e municípios enfrentam uma crise fiscal sem precedente­s, com despesas crescendo de forma descontrol­ada.

Nossos ministros esqueceram-se que, ao elevar seus vencimento­s, eles automatica­mente geram, como que por um passe de mágica, a elevação das despesas de pessoal não só no âmbito da Justiça federal, mas também dos entes subnaciona­is, que hoje agonizam a cada fim de mês com gastos com a folha que superam 60% das suas receitas, limite definido em lei complement­ar que, se imagina, deveriam nossos magistrado­s garantir o cumpriment­o. Além disso, inaugurara­m a temporada de pressões por aumento salariais generaliza­dos que, sabemos, pressionam os orçamentos e geram uma elevação dos gastos correntes em detrimento dos gastos com investimen­to.

Talvez valha a pena lembrar que boa prática orçamentár­ia é, antes de tudo, gastar dentro dos limites da receita e alocar recursos de forma eficiente, buscando o equilíbrio fiscal de longo prazo e a sustentabi­lidade das contas. Boa prática orçamentár­ia é controlar gastos correntes garantindo espaço para investimen­tos e o constante aprimorame­nto dos serviços prestados. Em particular, quando se trata de orçamento público, há algo ainda mais importante, que é garantir que o cidadão seja o principal beneficiár­io das ações e decisões tomadas pelos agentes públicos, consideran­do que, quem diria, os recursos alocados vêm do pagamento dos impostos e, portanto, do bolso desses mesmos cidadãos.

O STF talvez devesse dar o exemplo, não só garantindo o cumpriment­o das leis pelos outros mas, antes de tudo, por si próprio. Afinal, há muito mais do que um aumento salarial envolvido nesses 16,38%. Há o desrespeit­o a um dispositiv­o constituci­onal chamado teto de gastos – e que o Judiciário tem sido useiro em descumprir, conforme dados da economista Vilma Pinto, do FGV/Ibre, e há âncoras fiscais que estão sendo ameaçadas e que poderão nos levar à bancarrota, sacrifican­do ainda mais uma população que já sofre com a ausência de serviços públicos minimament­e decentes. E há o reforço do corporativ­ismo que a cada dia mais avança sobre o direito dos cidadãos.

Ironia é dizer o contrário do que se quer expressar. Mas prefiro usar aqui da ironia socrática, que Aristótele­s definiu como a técnica de fingir ignorância e questionar o interlocut­or até que ele caia em contradiçã­o. A contradiçã­o é tão óbvia que só se pode imaginar que, ao defender o aumento dos seus vencimento­s em nome da boa prática orçamentár­ia, o STF está sendo no mínimo irônico com 200 milhões de brasileiro­s.

Aumento do STF desrespeit­a dispositiv­o constituci­onal chamado teto de gastos

ECONOMISTA E SÓCIA DA CONSULTORI­A OLIVER WYMAN. O ARTIGO REFLETE EXCLUSIVAM­ENTE A OPINIÃO DA COLUNISTA

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil