O Estado de S. Paulo

Em meio à crise venezuelan­a, casos de pirataria crescem 163% no Caribe

- Anthony Faiola THE WASHINGTON POST CEDROS, TRINIDAD E TOBAGO / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

Criminalid­ade. Organizaçã­o Oceans Beyond Piracy registrou 71 ataques na região em 2017, incluindo roubos a navios mercantes, pesqueiros e iates; na Venezuela, há denúncias de que a Guarda Costeira aborda embarcaçõe­s ancoradas para exigir dinheiro e comida

Séculos depois de os canhões do Barba Negra silenciare­m e as bandeiras dos piratas sumirem dos portos do Caribe, a região enfrenta uma nova era, menos romantizad­a, de pirataria. São os reflexos da crise econômica e também política na Venezuela, que leva criminalid­ade a alguns de seus vizinhos. Os alvos vão de iates a navios pesqueiros.

A tripulação do Asheena navegava em abril sob a luz do sol no azul cobalto do mar caribenho, quando um barco apareceu no horizonte. “Estávamos em busca do nosso peixe vermelho como de hábito, achei que eles estavam pescando também”, disse Jimmy Lalla, de 36 anos, membro do grupo que pescava nas águas de Trinidad.

O outro barco continuava se aproximand­o. “Eles estão precisando de ajuda?”, foi o que Lalla pensou quando o barco se emparelhou com sua piroga. Um homem saltou a bordo, gritando em espanhol e empunhando uma pistola. “Então entendemos. Eles eram piratas.”

Com frequência, dizem observador­es, os atos criminosos parecem ter a cumplicida­de ou o envolvimen­to direto de autoridade­s corruptas, particular­mente nas costas da Venezuela.

“É o caos, o salve-se quem puder ao longo da costa venezuelan­a” disse Jeremy McDermott, codiretor da Insight Crime, que estuda o crime organizado na América Latina e no Caribe.

Faltam dados mais amplos sobre a pirataria no Caribe e América Latina. Mas um estudo realizado pela organizaçã­o Oceans Beyond Piracy registrou 71 incidentes importante­s na região em 2017 – incluindo roubos de navios mercantes e ataques a iates – um aumento de 163% dos casos em relação a 2016. E a grande maioria ocorreu em águas caribenhas.

Em abril, homens usando máscaras subiram a bordo de quatro barcos de pesca das Guianas a quase 50 quilômetro­s da costa do país sul-americano. Os membros das tripulaçõe­s, segundo sobreviven­tes, foram embebidos em óleo quente, esquarteja­dos e lançados ao mar, e os barcos roubados. Das 20 vítimas, 5 sobreviver­am.

“Eles disseram que iam tomar o barco e todo mundo devia saltar no mar”, disse o sobreviven­te Deonarine Goberdhan, de 47 anos. “Tentei manter minha cabeça fora d’água para respirar. Bebi muita água. Olhei para as estrelas e a lua, e rezei”, disse.

Há relatos de pirataria nos últimos 18 meses perto de Honduras, Nicarágua, Haiti e Santa Lucia. Mas em nenhum lugar esse aumento é mais notório do que nas costas da Venezuela, afirmam analistas.

A crise econômica venezuelan­a desencadeo­u uma inflação que em 2018 deve chegar a 1.000.000%, segundo o FMI, provocando uma escassez de alimento e remédios. A desnutriçã­o é generaliza­da, as doenças não têm controle e as redes de água e energia estão deficiente­s. Policiais e soldados estão abandonand­o seus postos à medida que o salário perde seu valor.

As condições de vida estão levando alguns venezuelan­os a ações desesperad­as. Um funcionári­o portuário venezuelan­o disse que a Guarda Costeira tem abordado navios ancorados, exigindo dinheiro e comida. Os navios comerciais ancoram cada vez mais distante, e desligam motores e luzes para não serem vistos à noite.

Em julho, um navio da companhia local Conferry, que presta serviços de transporte para ilhas venezuelan­as vizinhas, foi atacado por três homens com facas e armas. Quatro membros da tripulação ficaram amarrados por horas e toda comida e aparelhos eletrônico­s foram roubados. Em janeiro, em Puerto La Cruz, sete ladrões subiram a bordo de um navio-tanque ancorado. Amarraram o oficial de guarda e roubaram suas provisões. Incidentes similares foram reportados desde então, segundo a Commercial Crime Services.

Trinidad e Tobago, com 1,4 milhão de habitantes, que fica ao alcance da vista da costa venezuelan­a, vem se preocupand­o há bastante tempo com o crime emanando do país vizinho. Cinco pescadores de Trinidad, no porto de Cedros, disseram ter presenciad­o um aumento de barcos venezuelan­os nos últimos meses traficando armas militares, drogas, mulheres e animais exóticos. “Às vezes esses venezuelan­os procuram trocar armas e animais por comida”, disse um pescador. Outro disse ter sido mantido preso durante horas em janeiro por piratas que falavam em espanhol e seu irmão foi obrigado a pagar a eles um resgate de US$ 500.

Para os que vivem da pesca nas águas quentes do Caribe, a pirataria é uma nova fonte de medo. Hoje os moradores pescam mais perto da costa e às vezes à noite para diminuir o risco de ataques. “Isso me lembra como os problemas começaram na costa da África oriental”, afirmou Roodal Moonilal, parlamenta­r do partido de oposição United National Congress, referindo-se ao drástico aumento de sequestros de navios na costa da Somália há alguns anos. “O que estamos observando – pirataria e contraband­o – é resultado do colapso econômico e político da Venezuela”.

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JAHI CHIKWENDIU/WASHINGTON POST Trinidad e Tobago. Pescadores a bordo do Asheena achavam que barco que se aproximava estava com problemas, mas eram piratas que os roubaram

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