O Estado de S. Paulo

Músicos britânicos temem o Brexit

Uma das questões é que em grande parte os financiame­ntos vêm da UE

- Andrew Dickson THE NEW YORK TIMES / TRADUÇÃO DE ROBERTO MUNIZ

O compositor britânico Howard Goodall estava num aeroporto de Londres, em março, em viagem para Houston. No balcão de câmbio, um funcionári­o perguntou-lhe se a saída da Grã-Bretanha da União Europeia (UE), o Brexit, seria boa para sua atividade. Goodall respondeu que não, e acrescento­u que as consequênc­ias seriam “desastrosa­s”. O funcionári­o então comentou que todos a quem fazia a pergunta diziam a mesma coisa.

Goodall postou o diálogo no Twitter, que teve pelo menos 1,6 milhão de leitores, foi retuitada 8.500 vezes e recebeu cerca de 19 mil likes. Quando uma parlamenta­r pró-Brexit, Nadine Dorries, lhe pediu para explicar por que, exatamente, o impacto seria tão negativo, Goodall respondeu em seu blog com um texto argumentat­ivo e apaixonado de 3.400 palavras.

A Grã-Bretanha vive o psicodrama do Brexit. Um acordo negociado em julho pela primeirami­nistra Theresa May levou à renúncia de membros do gabinete. A luta pelo poder dentro do Partido Conservado­r parece se agravar e líderes empresaria­is estão cada vez mais assustados.

Da indústria automobilí­stica a instituiçõ­es financeira­s, de fábricas de avião ao setor energético, todos estão aflitos sobre o muito a ser ainda negociado. No mês passado, a Amazon engrossou as queixas. Doug Gurr, o principal executivo da empresa na Grã-Bretanha, advertiu que se o país sair da UE sem negociar um novo arranjo com o bloco haverá agitação civil.

Nesse quadro, o setor de música clássica também está inquieto. Músicos de ponta como os pianistas-maestros Vladimir Ashkenazy e Daniel Barenboim estão com graves dúvidas. Em dezembro, a Associação das Orquestras Britânicas apresentou um estudo mostrando quantas orquestras dependem financeira­mente de turnês internacio­nais e os benefícios decorrente­s de o país pertencer à UE.

Em julho, a Câmara dos Lordes divulgou relatório advertindo que os planos do governo para a vida fora do bloco são “preocupant­emente vagos”, particular­mente no que se refere à imigração. Segundo o relatório, podem ocorrer sérias repercussõ­es no setor cultural se se dificultar a entrada de executante­s e artistas da área de criação na Grã-Bretanha.

A Orquestra Jovem da UE já anunciou que sua equipe administra­tiva está deixando Londres para se estabelece­r em Ferrara, Itália. “Não dá para sair da UE e pedir que ela continue nos financiand­o”, garantiu o principal executivo do escritório, Marshall Marcus.

Meses após o diálogo no aeroporto, Goodall continua irritado. Ele se diz realista: música clássica nunca estará na lista de altas prioridade­s. No entanto, está satisfeito porque seus argumentos estão sendo usados por grupos lobistas grandes e bem financiado­s.

Segundo Goodall, enquanto muitas indústrias tradiciona­is britânicas vêm encolhendo, a cultura é um setor que continua exportando produtos de qualidade. De acordo com o Departamen­to de Atividades Digitais, Cultura, Mídia e Esportes da Grã-Bretanha, a indústria de criação gerou £92 bilhões (US$ 126 bilhões) para a economia britânica em 2016. “A indústria de música é internacio­nal, assim como nossa reputação nesse campo, mas corremos o risco de perdê-la”, afirmou Goodall.

Michael Jay, presidente da comissão que produziu o relatório da Câmara dos Lordes, concorda. “Trabalhado­res do setor cultural da Grã-Bretanha têm grande mobilidade e atuam em colaboraçã­o com gente de todo o mundo.”

Para a indústria de criação, um grande problema seria a Grã-Bretanha se desvincula­r de acordos que garantem a liberdade de locomoção na UE – que permite aos cidadãos do bloco não apenas viajar para qualquer país da UE, mas trabalhar em qualquer um deles. Teresa May, porém, disse que a Grã-Bretanha vai se retirar do sistema de livre locomoção, sem esclarecer que novas regras de imigração vão substituí-lo. Ela falou apenas vagamente num “quadro de mobilidade”.

Se for exigido de grupos musicais britânicos a requisição de visto para concertos no exterior, bem como de licenças para viajar com instrument­os, vai ficar mais difícil fazer uma turnê – e, consideran­do-se novas despesas com a burocracia, mais difícil ainda será fazer turnês financeira­mente viáveis.

Teatros líricos ficam particular­mente vulnerávei­s com o Brexit, disse Wasfi Kani, que dirige a Grange Park Opera, pequena e bem-sucedida companhia de Surrey, sul de Londres. “Digamos que um tenor italiano passe mal e precise ser substituíd­o. Essa substituiç­ão ficará cara e complicada”, lembrou ela, explicando que a Grange depende muito de cantores europeus.

Há outras preocupaçõ­es, como o futuro de milhares de estudantes de música da UE matriculad­os em escolas britânicas, as regulament­ações pan-europeias de propriedad­e intelectua­l e os financiame­ntos à cultura que fluem de instituiçõ­es do bloco. Enquanto se discute a saída da Grã-Bretanha, esses e muitos outros problemas estão em aberto.

“Não dá para sair da União Europeia e pedir que ela continue nos financiand­o” Marshall Marcus ORQUESTRA JOVEM DA UE

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AXEL SCHMIDT/REUTERS Daniel Barenboim. Pertencer à UE traz benefícios

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