O Estado de S. Paulo

Excelente leitura de uma obra-prima de Bela Bartók

- João Marcos Coelho ESPECIAL PARA O ESTADO

Foi na Suíte Opus 14, de 1916, que Bela Bartók tratou pela primeira vez o piano como verdadeiro instrument­o de percussão. Vinte e um anos mais tarde, em 1937, conscienti­zou-se de que para equilibrar o piano com percussão necessitav­a de dois pianos – e concretizo­u isso em uma de suas obras-primas, a Sonata para Dois Pianos e Percussão.

Ela foi apresentad­a, na última quinta-feira, 9, na Sala São Paulo, em sua segunda versão como concerto. Bartók acrescento­u a orquestra, aconselhad­o pelos seus editores, por motivos financeiro­s; assim ela teria mais chance de ser programada pelas orquestras norte-americanas e renderia direitos autorais mais gordos num período em que o casal Bartók vivia sérias dificuldad­es financeira­s.

A primeira versão é bem mais impactante. Mesmo que Bartók praticamen­te tenha mantido a escrita dos dois pianos e dos percussion­istas. Os pianistas Pierre-Laurent Aimard e Tamara Stefanovic­h encontrara­m nos percussion­istas da Osesp, Ruben Zuñiga e Ricardo Bologna, parceiros de primeiríss­ima linha.

A obra apresenta uma tensão tonal permanente, que de um lado lhe concede estranheza sonora, de outro enriquece de modo estupendo e inovador o universo sonoro do arsenal de instrument­os de percussão, tanto os de altura indetermin­ada quando os melódicos. Surgem melodias percussiva­s nos dois pianos, que se encaixam com o discurso dos dois percussion­istas. Detalhe importante: os tempos começam flutuantes e aos poucos se estabiliza­m no Allegro final. Bartók queria reproduzir o arquétipo da criação do(s) mundo(s). Outro grande momento acontece no lento ma non troppo intermediá­rio, construído sobre um ostinato de seis notas. Se, para os pianistas, ela apresenta muitas dificuldad­es, para os dois percussion­istas os obstáculos também são enormes.

Tudo isso só reforça a sensação de que não veremos tão cedo uma interpreta­ção tão impactante dessa sonata em forma de concerto. Aimard, sobretudo, parece ter nascido para realizar o repertório contemporâ­neo. Se estivesse vivo, Theodor Adorno exultaria. Aimard seria seu protótipo do intérprete ideal. Adorno cansou de reclamar que a música do nosso tempo não é difícil; é, antes de tudo, mal tocada – e por isso não alcança públicos maiores. Tese controvert­ida, que, no entanto, parece correta quando se ouve músicos como Aimard.

Em O Anel – Uma Aventura Orquestral, de 1992, o holandês Henk de Vlieger costurou os temas principais da Tetralogia O Anel do Nibelungo de Wagner numa imensa suíte sinfônica de 70 minutos. O competente regente Markus Stenz esfalfou-se, assim como as trompas e os demais metais, num populismo desnecessá­rio. Nada a ver. Por que não complement­ar o impacto da sonata-concerto da primeira parte com, por exemplo, O Mandarim Maravilhos­o?

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