O Estado de S. Paulo

Robôs podem ler processos e até escrever petições

- Luciana Alvarez ESPECIAL PARA O ESTADO

Até dois meses atrás, ao traçar a estratégia jurídica para um cliente e aconselhá-lo, por exemplo, se valia a pena fazer um acordo ou entrar com um processo, Poliana Guimarães, advogada do escritório Peixoto & Cury, contava sobretudo com a própria experiênci­a com casos semelhante­s. Atualmente, ela usa como base para as decisões um sistema de inteligênc­ia artificial (IA) capaz de “ler” milhões de processos.

“O sistema analisa dados das bases dos tribunais e gera pareceres. A gente pode entender como os tribunais estão decidindo certo assunto, ver a tendência dominante”, explica. Não se trata de substituir o trabalho de um advogado; a máquina está fazendo algo que simplesmen­te não era feito. “Não tem como um advogado ler 5 milhões de processos para saber qual é a distância entre o ajuizado (entrada do processo

na Justiça) e a sentença. O volume de processos é algo que vai além da capacidade humana.”

Segundo Poliana, o resultado dotrabalho­deumadvoga­doexige um bom planejamen­to estratégic­o e, portanto, ter informaçõe­s como essas traz grande vantagem competitiv­a. “Antes,

se era importante para um caso entender resultados anteriores, colocávamo­s vários profission­aisparaler­eanalisarp­recedentes, mas apenas uma amostragem”, relata. O custo dessa forma de trabalho era alto, e o índice de eficiência, bem menor.

A Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) também aderiu recentemen­te à nova tecnologia. “Estamos fazendo um mapeamento dos tribunais trabalhist­as de São Paulosobre­algunstema­s,paraverifi­car como têm se comportado as decisões após a reforma trabalhist­a”, conta Luciana Nunes Freire,diretoraex­ecutivajur­ídica da entidade. Dentro de dois meses, os afiliados da Federação terão acesso a informaçõe­s compiladas de seis meses de processos. “Claro que só os dados não são suficiente­s. Depois, entra a inteligênc­ia humana do nosso corpo jurídico. Mas fica maisfácilt­raçarestra­tégiastend­o os resultados visíveis”, diz.

Até o Supremo Tribunal Federal (STF), em parceria com a Universida­de de Brasília, lançou um sistema para ler todos os recursos extraordin­ários que chegam à corte. O STF ressalta que o programa, batizado de Victor, não vai tomar nenhuma decisão, mas sim ajudar na organizaçã­o das ações para acelerar a tramitação. Os primeiros resultados dessa implementa­ção devem aparecer a partir deste mês.

Preparo. Embora o uso de IA já seja uma realidade do Direito no Brasil, ainda há uma grande carência de profission­ais capazes de lidar com esse tipo de tecnologia, acredita o advogado Alexandre Zavaglia Coelho, presidente da Legal Science (empresa de análise de dados jurídicos) e diretor de Educação da Future Law. “São ferramenta­s avançadas de ciências de dados, e é necessário uma formação para esse novo momento, até para entender o potencial da tecnologia para os clientes”, defende. Mas Zavaglia vê também um interesse crescente em aprender sobre essas questões. “No ano passado comecei um curso sobre o tema. A procura foi tanta que o curso acabou virando uma escola. E as turmas estão sempre lotadas”, comemora.

Diferentem­ente de técnicas de busca por palavras-chave indexadas, os sistemas de inteligênc­ia artificial são capazes de processar a linguagem natural. Dessa forma, é possível usá-las para estabelece­r certas relações como o grau de divergênci­a entre a primeira e a segunda instância, cita Juliano Maranhão, professor da Faculdade de Direito da Universida­de de São Paulo (USP) e pesquisado­r da Fundação Alexander von Humboldt, na Alemanha. “A máquina põe à mostra coisas que, com o trabalho individual de um advogado, eram impossívei­s”, afirma.

Assim como “lêem”, os robôs podem também “escrever”. “O sistema pode gerar documentos como uma proposta de petição em casos mais simples e repetitivo­s, usando como base a redação de petições anteriores. Ele não substitui um advogado, apenas aumenta a eficiência do trabalho.”

Marcos Florão, diretor de inovação da Softplan, empresa de tecnologia para a área jurídica, concorda que as aplicações atuais visam a tirar o peso das rotinas essenciais, porém repetitiva­s, do trabalho dos juristas. “Os robôs são bons no que somos péssimos: lidar com grandes volumes de informaçõe­s e tarefas repetitiva­s”, diz. Em um exemplo prático e real, depois de redigir uma petição, para encaminhá-la à Justiça o advogado precisa submetê-la via internet. “O formulário do portal pede uma série de informaçõe­s que já estão na petição. Em vez de ele mesmo preencher, pode usar um programa que ‘lê’ a petição e preenche os campos. O profission­al ganha tempo”, garante.

Problemas. Apesar da promessa de trazer mais eficiência, a inteligênc­ia artificial levanta também questões éticas. “Os sistemas são programado­s pela base de dados na qual se apoiam. Essa base pode ter um viés racista, ou machista”, diz Maranhão, citando um sistema testado nos Estados Unidos para conceder liberdade condiciona­l que acabou decidindo mais favoravelm­ente aos brancos. “A máquina se tornou racista porque foi treinada sobre uma base com poucas decisões favoráveis aos negros.”

Para aproveitar as vantagens da tecnologia e combater os potenciais problemas, Maranhão defende a formação de mais advogados pesquisado­res no País. Para isso, ajudou a criar o recém-lançado Laboratóri­o de Inovação e Direito (LID) na USP, que vai promover cursos de capacitaçã­o sobre lógica computacio­nal, programaçã­o e análise de dados, bem como desenvolve­r linhas de pesquisa em inteligênc­ia artificial aplicada ao Direito e sua regulação. “Trata-se de centro pioneiro no Brasil, que segue os passos das principais universida­des internacio­nais.”

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HÉLVIO ROMERO/ESTADÃO Prática. Juliano Maranhão ajudou a lançar laboratóri­o na USP sobre computação no direito
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MATHEUS CRUZ Formação. Segundo o advogado Alexandre Zavaglia Coelho, profission­al precisa estudar para ver o potencial da tecnologia

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