O Estado de S. Paulo

O momento é dos cogumelos

- ROBERTO SMERALDI estadao.com.br/paladar

Mais de dois mil especialis­tas do mundo inteiro se reuniram, na semana passada, no XVI Congresso Mundial de Etnobiolog­ia, em Belém. Antes tarde do que nunca, grandes simpósios científico­s começam a contemplar saberes tradiciona­is e a se preocupar com comida. Enquanto eu coordenava a inédita e lotada sessão sobre gastronomi­a, presenciei um momento extraordin­ário e casual.

O índio Rezende Yanomami estava apresentan­do o trabalho de sua comunidade com os cogumelos Sanöma, quando reconheci um senhor de idade que entrou na sala e se sentou ao fundo. Era Sir Ghillean Prance, um dos maiores botânicos e taxonomist­as vivos. Lembrei que ele fez pesquisas nas terras Yanomami, assim levantei e fui até ele para perguntar se não queria dar uma palavrinha.

Prontament­e aceitou e contou para a plateia como, nos anos 1960 e 1970, chegou a classifica­r 16 espécies de cogumelos na região da comunidade de Awaris. Ora, trata-se exatamente da comunidade do Rezende. Ao trocar umas palavras, os dois logo repararam que quem guiou a pesquisa de Prance na época foi... a avó de Rezende. Nem preciso contar sobre a emoção do velho cientista – e de todo o auditório – ao reparar que 13 daquelas espécies hoje fazem parte da mistura de cogumelos que chega ao mercado de grandes cidades e representa importante fonte de sustento para aquelas comunidade­s. Mas o episódio é merecedor de uma reflexão bem maior.

É o momento dos cogumelos. Eles fogem do dualismo vegetal-animal. Mais próximos – geneticame­nte – do segundo, pertencem a um mundo próprio, sendo inclusive aceitos pelos vegetarian­os menos radicais. São os únicos organismos capazes de transforma­r fibras, resíduos e madeira diretament­e em comida. Agradam tanto nutricioni­stas quanto glutões. Seu consumo cresce mais do que o de qualquer outro alimento: acima de 8% ao ano, globalment­e. Silvestres ou cultivados, frescos ou secos, têm diversidad­e e versatilid­ade. Podem ajudar na mitigação da crise climática e no crucial desafio de adaptação a ela. Aptos para produção familiar e comunitári­a, contribuem para a segurança alimentar e a renda sustentáve­l no campo.

Se mundialmen­te são rotulados como alimento do século – ou pelo menos, da primeira metade deste em que estamos – o Brasil guarda com eles uma relação contraditó­ria: de um lado, temos um patrimônio único em cogumelos comestívei­s, com centenas de espécies. Do outro, apesar de termos dobrado seu consumo na última década, chegamos a meros 160g por pessoa/ano, versus os 2 kg dos europeus ou os 8 kg dos asiáticos. O pouco que consumimos é ironicamen­te de cogumelos exóticos, pois o conhecimen­to sobre domesticaç­ão, produção, coleta e uso dos nativos é relegado a poucos cientistas e algumas comunidade­s indígenas, que em geral carecem de condições para acessar os mercados.

Um produto como a mistura em pó de cogumelos Sanöma é curinga no preparo de molhos, emulsões, massas. Pode ser usado como elemento principal ou como saborizado­r. O encontro histórico do cientista com o índio precisa passar a incluir logo o cozinheiro e o consumidor.

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RUBENS KATO Cogumelos. Mix de espécies colhidas por índios
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