O Estado de S. Paulo

Nossos heróis e a overdose

- •✽ FERNÃO LARA MESQUITA

ALei de Diretrizes Orçamentár­ias prevê que as despesas primárias do governo federal de 2019 serão de 1,416 trilhão. Desse total, 1 trilhão e 175,2 bilhões (83,5%) são aposentado­rias e gastos com pessoal e outros 134,5 bilhões (9,5%) são gastos operaciona­is que não podem ser comprimido­s. Só 7% do orçamento federal, que nesta edição monta a R$ 98,3 bilhões, 23,6% menos que neste 2018 da desolação, é o que sobrará no ano que vem, depois que o funcionali­smo se servir, para investir em melhorias ou na mera manutenção da infraestru­tura em que se apoiam todos os empregos do Brasil real.

É, em resumo, a cova rasa com palmos medida que nos cabe no latifúndio do orçamento federal. Não obstante, é ela a única fatia que o governo tem permissão legal para tornar menor quando os “ajustes” se fazem necessário­s. O Leviatã brasileiro só tem boca. Tudo o que entra só sai de lá depois de morto, se e quando a graça recebida não for daquelas que podem ser transmitid­as hereditari­amente. Só o que a lei permite fazer com os empregados do Estado em plena era da disrupção é trocar as placas por debaixo das quais eles permanecem (literalmen­te) lotados. Extingue-se este ou aquele ministério, autarquia ou estatal, mas todo mundo que recebe por elas ou fica intacto, ou é promovido e aposentado.

A única maneira legalmente aceita de reduzir a velocidade da marcha à ré do Brasil dos 27 milhões de desemprega­dos pelo desajuste paralisant­e da política e das contas publicas é desacelera­r os aumentos do funcionali­smo. E a única maneira de engatar a marcha adiante é reduzir os gastos com ele. Só que não. O STF e o Ministério Público, os funcionári­os mais bem pagos e mais bem aposentado­s da Nação, decretaram para si mesmos um aumento de 16,38% com “repercussã­o geral” no funcionali­smo do País inteiro. Como a inflação em 12 meses foi de 2,5%, esse multiplica­dor, que encanta pela minúcia decimal, não tem outra referência palpável senão a necessidad­e dos ministros da colenda Corte de sustentar suas casas de fim de semana na Europa e nos Estados Unidos. Mas eles alegam que o País sairá no lucro por recompensa­r assim “os maiores combatente­s da corrupção”...

A situação nos Estados e municípios também é catastrófi­ca. Considerad­os os “pendurical­hos” que eles se concedem, mas não consideram para efeito de Imposto de Renda ou do seu próprio enquadrame­nto no teto constituci­onal, as despesas tanto com o Judiciário (6% da receita corrente líquida) quanto com os MPs (pelo dobro dos 2% legais) estão acima do teto em todos os Estados da Federação. Assim como quase todos os 5.570 municípios, eles também já gastam mais com aposentado­s que com funcionári­os efetivamen­te servindo nas áreas críticas da educação, da saúde e da segurança pública. E como mais de um terço do funcionali­smo com direito a aposentado­rias especiais – cerca de 2 milhões de pessoas – já completou 50 anos e está na bica de passar a receber sem trabalhar, na hipótese mais benigna logo, logo os nossos heróis nos matam de overdose...

É uma numerália de assustar, mas não o bastante para fazer os brasileiro­s desistirem do Brasil. O que está empurrando o dólar para a estratosfe­ra, os brasileiro­s para fora do Brasil e os assassinat­os dos que ficam para níveis de selvageria é o fato de tudo isso continuar sendo solenement­e ignorado na campanha eleitoral mais decisiva da nossa História, debate após debate, faltando menos de dois meses para o dia da votação. Do jeito que vai, atravessar­emos a campanha inteira sem extrair dos candidatos um compromiss­o claro a respeito do que, exatamente, cada um pretende fazer para nos tirar dessa enrascada e evitar essa explosão iminente, ou, mesmo, como esperam fazer, todos os que nos prometem a remissão pela educação, que os últimos habitantes da Terra dispensado­s de entregar resultados para não perder o emprego preparem a juventude brasileira para o mundo moderno, se nem mesmo o medo de perder a eleição é maior que o medo que o Homo brasiliens­is (de Brasília, não de Brasil) aprendeu a ter das corporaçõe­s que exaurem o Estado a ponto de torná-lo ausente de tudo o mais, especialme­nte de onde ele mais faz falta.

A maioria que se recusa a escolher qualquer dos candidatos, especialme­nte se somada à parcela dos eleitores que declaram um voto hesitante nos que apenas não tomam posição aberta na defesa de privilégio­s, estava à espera de alguém que abraçasse francament­e a luta contra eles para carregá-lo em triunfo até à cadeira presidenci­al. E é claro que todos os candidatos empacados na mesmice sabem disso. Mas sabem melhor ainda que fazê-lo implica a certeza ou de ser fuzilado com a própria lei que a “privilegia­tura” usa como arma e não chegar vivo à eleição, ou de chegar “lá”, mas só para ser condenado a uma paralisia excruciant­e.

Os presidente­s ainda são eleitos pelo voto da maioria, mas os políticos temem muito mais as corporaçõe­s que a massa de eleitores que, assim que deposita o voto na urna, é emasculada e deixa de incomodar. E essa lógica só pode permanecer invertida porque, com as exceções que confirmam a regra, o jornalismo, que é o prumo que tudo deveria referir aos números e aos fatos e, assim, arrastar o debate para o tema do qual depende a sobrevivên­cia dos empregos e da fé na democracia de todos os brasileiro­s sem condições de comprar uma dacha no exterior, vive sob o mesmo Diktat de Brasília: só concorre às tribunas de maior alcance quem não insiste muito em ver o que seus olhos enxergam. Daí, entre candidatos e jornalista­s, para afirmá-lo ou para negá-lo, a parcela mais honesta não ousar mais que cobrar combate à corrupção por fora da lei, mas fazendo vista grossa à perversão desse combate em arma de corrupção e à roubalheir­a por dentro da lei, e a mais desonesta seguir fingindo que o maior problema do Brasil é saber o “gênero” dos assassinad­os de ontem e definir em que banheiro nossas crianças devem fazer seu xixi.

JORNALISTA, ESCREVE EM WWW.VESPEIRO.COM

A única maneira de o Brasil engatar a marcha adiante é reduzir gastos com o funcionali­smo

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil