O Estado de S. Paulo

Tributo afetivo a Tônia Carrero

Neta da grande artista, Luisa Thiré revive papel da avó no teatro

- Leandro Nunes

Tônia Carrero, que morreu há pouco mais de cinco meses, completari­a 96 anos na quinta-feira, dia 23. No momento atual em que o País ignora o legado cultural de seus artistas, cabe aos familiares e amigos manter essa memória. E para lembrar a grande artista, estreou também ontem, 23, Navalha na Carne – Uma Homenagem a Tônia Carrero, com a atriz e neta Luisa Thiré no papel da prostituta Neusa Sueli.

A peça de Plínio Marcos escrita em 1969 foi a aposta que deslocaria as bases do teatro brasileiro, no auge da ditadura. Na história, a prostituta Neusa Sueli chega a seu quarto e encontra o cafetão Vado irritado por não encontrar o dinheiro que ela deixara para ele. Fórmula semelhante a Dois Perdidos Numa Noite Suja (1966), peça que discutia a marginalid­ade do ponto de vista de dois trabalhado­res braçais que moravam em uma pensão barata. Ambas as peças foram censuradas naquele período, o que levou Tônia a negociar diretament­e com os censores para a estreia de Navalha..., lembra Luisa. “Ela acompanhou uma leitura dramática e se apaixonou pelo texto, mas logo veio a má notícia de que o conteúdo sexual e os palavrões não seriam bem-vistos pela censura”, conta. “Ela foi pessoalmen­te conversar com a equipe, eles liberaram o texto e falaram: ‘Quero ver você se virar com todos esses palavrões’.”

O tom de alerta da mensagem da censura poderia soar apenas como um velho hábito da ditadura ao se dirigir aos artistas naquela época, mas também antecipava o próximo passo artístico que seria dado por Tônia. Seu talento como atriz foi moldado nos estudos de interpreta­ção em Paris, quando acompanhav­a em viagens o então marido, o artista plástico Carlos Arthur Thiré. Com sua estreia em 1949, no Teatro Brasileiro de Comédia, ela entrou no radar como intérprete de textos clássicos – com todo o luxo dos belos vestidos e chapéus nos figurinos de época – que aquele teatro considerad­o burguês adaptava. Outro passo importante pré-Neusa Sueli foi a fundação da CTCA, companhia criada ao lado de Paulo Autran e Adolfo Celi, que lhe daria mais autonomia na escolha dos trabalhos. “Ela e Paulo foram grandes parceiros. Quando ele morreu percebemos como essa memória foi nos deixando e o teatro perdeu com isso”, diz Luisa.

No fim dos anos 1960, a experiênci­a conquistad­a entregou a personagem Neusa Sueli a uma Tônia madura. A dramaturgi­a de Plínio Marcos exigia o despojamen­to de personagen­s clássicas, as farsas e os conflitos shakespear­ianos pelo poder. De modo indireto, Navalha... se aproximava do confronto vivido por três pessoas no estranho ambiente de Entre Quadro Paredes (1956), peça dirigida por Celi e estrelada por Tônia. Mas o grande contraste da peça de Plínio estava em colocar no centro da história o retrato, sem filtros e disfarces, a vida marginal de trabalhado­res do meretrício, como a prostituta, seu cafetão Vado e Veludo, o faxineiro gay da pensão. “Minha avó reconheceu que Neusa Sueli era uma personagem sedutora, mas também perigosa para qualquer atriz, por sua natureza decadente, e ninguém imaginava que ela conseguiri­a”, afirma Luisa.

Assim como em outros textos do autor, Abajur Lilás e Dois

Perdidos... , Navalha... segue a técnica de Plínio de apresentar um objeto na cena que servirá de motor para a trama. A procura pelo dinheiro passa a revelar o perfil dos personagen­s, seus interesses e pensamento­s. No quarto sujo e encardido da prostituta, a grana do dia deveria ser entregue ao cafetão. Por não encontrar, Vado agride a mulher. O casal passa então a investigar o principal suspeito: Veludo, vivido por Ranieri Gonzalez. O faxineiro insiste que não roubou o dinheiro, mesmo após ser violentado, física e verbalment­e. No papel de Vado, o ator carioca Alex Nader usa seu sotaque para unir a figura do malandro do Rio ao linguajar popular paulistano da época.

Na montagem de Gustavo Wabner, a atualidade do texto e da obra de Plínio ainda perturba as plateias. “O Brasil lidera casos de violência contra as mulheres e homossexua­is. Isso já era anunciado pelo autor. Hoje, percebemos que é algo generaliza­do e que sempre fez parte do País.” Para Luisa, a forma como a violência é tratada na peça retrata o comportame­nto machista atual. “Todos eles lidam com a agressão como algo comum, que faz parte da rotina. E a violência masculina surge na força física e no modo de falar com a mulher.”

A atriz encara a temporada como uma forma de continuar conectada à avó. Luisa diz que as mais antigas recordaçõe­s que tem de Tônia foram no teatro. “Enquanto ela se apresentav­a, eu ficava na coxia, já que as crianças não podiam estar na plateia. Enquanto isso, vestia seus figurinos e decorava suas falas. Descobri que muitas coisas que ouvi ali iriam marcar a história do teatro.” MILTON HATOUM O colunista está de licença para escrever um livro

 ?? ALEX SILVA/ESTADÃO ?? Carrero. Atriz se sentiu desafiada por Plínio Marcos a viver uma personagem marginal
ALEX SILVA/ESTADÃO Carrero. Atriz se sentiu desafiada por Plínio Marcos a viver uma personagem marginal
 ?? ARQUIVO/ESTADÃO ??
ARQUIVO/ESTADÃO

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil