Insólito brasileiro
Pesquisadores fazem revisão da produção fantástica nacional e veem um novo movimento: o fantasismo
Não é todo dia que surge a proposta – organizada – de um novo movimento literário. Pois nesta sexta-feira, 24, os pesquisadores Bruno Anselmi Matangrano (doutorando em literatura portuguesa pela FFLCHUSP) e Enéias Tavares (professor de literatura clássica na Universidade Federal de Santa Maria) lançam em São Paulo o livro Fantástico Brasileiro – O Insólito Literário Do Romantismo
Ao Fantasismo, na Livraria Martins Fontes da Paulista, às 19h.
O livro faz uma recomposição histórica do fantástico na literatura brasileira – os autores dizem que um “elemento insólito sempre se revelou uma parte importante de nosso patrimônio literário, embora nem sempre tenha sido valorizado e entendido como tal”. Eles repassam a obra de nomes como Machado de Assis, Graciliano Ramos e Guimarães Rosa, mas também de nomes mais ligados ao mágico, como Murilo Rubião e José J. Veiga, bem como de gente menos conhecida, como Adelpho Monjardim (19031986) e Augusta Rosa (1948), até chegar ao contemporâneo, sempre destacando os aspectos próximos do fantástico.
No epílogo do livro, eles propõem uma nova formulação de movimento literário: o “fantasismo” pega elementos da tradição literária fantástica e os adapta à nova realidade do mercado editorial brasileiro do século 21, com editoras mais atentas a essa produção, novos canais de divulgação, mais pesquisa acadêmica sobre o tema e, simplesmente, mais autores lançando livros (na obra, há dezenas e dezenas de exemplos).
Eles situam o início do movimento no ano 2000, com o lançamento de Os Sete, de André Vianco, e a indicação de Max Mallmann (1968-2016) para o Prêmio Jabuti por Síndrome de
Quimera – livros que iniciam um “lento processo” de abertura para as grandes editoras, que viria a se confirmar em 2007 com A Batalha do Apocalipse, de Eduardo Spohr, e o primeiro volume da trilogia Dragões de Éter, de Raphael Draccon.
Ao mesmo tempo, eles apontam o surgimentos das editoras Novo Século (2000), Giz (2005), Tarja (2008), Draco (2009), Estronho, Vermelho Marinho e Argonautas (2010), bem como a chegada da Leya em 2009 (que lançaria Carolina Munhóz e outros) e da dedicação da Gutenberg, do Grupo Autêntica, ao fantástico. Grupos de pesquisa surgem em diversas universidades, especialmente na Uerj (Nós do Insólito, coordenado pelo professor Flavio García, que assina o prefácio do livro). Além da movimentação de leitores e fãs, criando prêmios, simpósios, blogs, podcasts e canais no YouTube para divulgar a produção.
“O fantasismo nasce da vontade explícita de um grupo significativo de escritores de fazer literatura fantástica, de modo geral, e de escrever fantasia, em particular”, explica Matangrano. “Num primeiro momento, as fantasias brasileiras na maior parte das vezes colavam-se aos modelos estrangeiros, às vezes de modo quase caricato ou paródico. Hoje, ela criou autonomia, como demonstra Ordem Vermelha – Filhos da Degradação, de Felipe Castilho. Assim, podemos dizer que já há uma fantasia tipicamente brasileira. Pautada, sim, no diálogo com a literatura e cinema estrangeiros, mas deglutidos. O que nos leva a outra característica intrínseca ao movimento: o fantasismo é essencialmente antropofágico – como me parece ter sempre sido qualquer movimento nacional de relevo. A partir do que é feito lá fora, os escritores brasileiros encontram a própria voz, criando algo novo, em diálogo com nossa história, cultura e tradição. Mas, antes de tudo, repito, está a intenção.”
Além disso, há no movimento também uma ampla preocupação com tecnologia e multimídia. “Hoje, projetos transmídia são comuns em universos fantásticos que se espraiam do cinema para os quadrinhos, para os livros, para os jogos, para a internet. Esses projetos extrapolam a noção tradicional que temos de narratividade”, explica Tavares, citando autores de literatura brasileira como Christopher Kastensmidt, Affonso Solano e Leonel Caldela.
Os autores também aplicam o conceito de “insólito”, usado nos estudos literários brasileiros desde a década de 1970, um guardachuva mais amplo – e menos estereotipado. “A vantagem teórica está em ser um conceito isento de preconceitos, sem ambiguidades e ainda mais abrangente, pois enquanto o fantástico muitas vezes é relegado às ditas ‘literaturas de gênero’ ou ‘literaturas populares’, o insólito abarca tanto o popular, quanto o erudito, a ‘alta literatura’, como a ‘literatura pop’, analisando-as pelo que têm em comum, sem hierarquizá-las”, comenta Matangrano.
Para os autores, é preciso vencer o preconceito contra a literatura fantástica – nascido, especulam, na necessidade de a literatura brasileira buscar uma identidade nacional e construir um cânone. “Os estudos culturais, pós-coloniais e feministas explicitaram isso nas últimas décadas: o cânone ocidental e nacional é resultado de interesses políticos, culturais e sociais, resultando comumente de especialistas caucasianos, heterossexuais e cristãos”, explica Tavares – essa formação adota critérios, deixa outros de lado, forma críticos e professores e pode ter criado o preconceito.