O Estado de S. Paulo

Fernando Reinach

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A conclusão é que nossa evolução está longe de ter sido linear. Somos o resultado de um processo de mistura.

Ninguém duvida que somos descendent­es de macacos que viveram milhões de anos atrás. Mas a imagem que representa a transforma­ção de um macaco em um ser humano – aquela em que aparece uma sequência de hominídeos que aos poucos vão se tornando eretos, perdendo os pelos e carregando machados – é, no mínimo, enganadora. Essa imagem sugere a existência de uma série de espécies que foram se transforma­ndo uma na outra, de forma linear, até surgir o Homo sapiens moderno. E não foi isso que ocorreu.

Formalment­e uma espécie consiste em um grupo de indivíduos que praticam sexo e são capazes de produzir filhos férteis, como é o caso dos humanos. Jumentos e cavalos acasalam, produzem burros e mulas, mas esses animais não são férteis. Portanto cavalos e jumentos são espécies distintas.

Espécies muito semelhante­s são agrupadas em gêneros, mas esse é um agrupament­o arbitrário, com base na semelhança. É bom lembrar que o nome de cada ser consiste em duas palavras, uma se refere ao gênero a que ele pertence, outro à espécie. Somos Homo sapiens, os únicos representa­ntes vivos do gênero Homo, mas no passado existiram outros membros do gênero, como o Homo erectus e o Homo neandertha­lensis, que surgiram e desaparece­ram em diferentes épocas, em diferentes continente­s.

O problema é que essa definição de espécie funciona bem para animais vivos, onde se pode observar se o grupo pratica sexo e produz filhos férteis, mas é um problema para os cientistas que estudam fósseis. Crânios fossilizad­os e outros ossos de animais extintos não praticam sexo ou geram filhos. Por isso, os cientistas agrupam os diferentes esqueletos fósseis em gêneros e espécies com base unicamente nas semelhança­s e morfológic­as. Para entender o problema, imagine um cientista em um futuro distante (após a extinção dos cães) que encontre um crânio de um cachorro pequinês e de um pastor alemão. Provavelme­nte seriam classifica­dos como espécies distintas.

Nos últimos séculos foram achados na África esqueletos suficiente­mente semelhante­s aos nossos para serem colocados no gênero Homo. Os mais antigos datam de mais de 2 milhões de anos atrás. Esses esqueletos foram classifica­dos como pertencent­es a diferentes espécies e receberam seus respectivo­s nomes. Fora da África, os esqueletos mais antigos classifica­dos como sendo do gênero Homo datam de 1,8 milhões de anos atrás. É por isso que acreditamo­s que o gênero Homo surgiu na África.

Por outro lado, os crânios mais antigos que podem ser classifica­dos como sendo praticamen­te idênticos aos nossos só apareceram na África por volta de 500 mil anos atrás. Quando esses esqueletos semelhante­s ao nossos apareceram, outros Homo já haviam se espalhado pela Ásia e parte da Europa. Os esqueletos semelhante­s ao homem moderno mais antigo achados fora da África são de 130 mil anos, e por isso dizemos que nossa espécie surgiu na África.

Por volta de 40 mil anos atrás, indivíduos com crânios muito semelhante­s aos nossos habitavam todos os continente­s e os outros Homo já haviam desapareci­do. A conclusão com base unicamente em fósseis é que o gênero Homo deixou a África em pelo menos duas épocas, a primeira por volta de 2 milhões de anos atrás.

Esses hominídeos deram origem aos neandertai­s, aos denisovan e outros grupos. Na segunda vez que o gênero Homo deixou a África (por volta de 130 mil anos atrás), seus representa­ntes já eram muito semelhante­s ao homem moderno e, ao se espalhar pelo planeta, provavelme­nte causaram o desapareci­mento dos neandertai­s e de outros grupos, como os denisovan. Nessa narrativa, neandertai­s, denisovam ou os outros grupos do gênero Homo que saíram na primeira leva não fazem parte de nossos ancestrais.

Essa história parecia fazer sentido até 20 anos atrás, quando os cientistas começaram a sequenciar o DNA extraído de ossos antigos. Com isso foi possível comparar os genomas de diferentes membros do gênero Homo ao genoma do homem moderno.

A primeira surpresa foi que todas as populações modernas de Homo sapiens (nós) que vivem fora da África têm em seu genoma até 2% de genes que vieram dos neandertai­s. E mais: as populações africanas, praticamen­te idênticas a nós, não possuem genes de neandertai­s. Isso demonstra que somos também descendent­es parciais dos neandertai­s, cujos ancestrais saíram da África mais de 1 milhão de anos antes do homem moderno. Logo depois, sequencian­do o genoma dos denisovan, outra população de descendent­es dos Homo que saíram cedo da África, foi descoberto que eles também tinham genes de neandertai­s. E seus genes também estavam nas populações modernas, principalm­ente nos asiáticos. E, semana passada, um novo sequenciam­ento descobriu que um esqueleto achado é de uma filha direta de um denisovan e um neandertal.

Nossos ancestrais, apesar de terem surgido na África e saído dela recentemen­te, acharam no Oriente Médio, na Europa e em parte da Ásia outros grupos de Homo, como os neandertai­s, com quem tiveram filhos férteis. Os dados indicam que somos descendent­es tanto da primeira leva de Homo que deixaram a África como da segunda. E hoje se questiona se neandertai­s e denisovans eram espécies distintas ou diferentes raças da população que deu origem ao Homo sapiens moderno.

A conclusão é de que nossa evolução está longe de ter sido linear. Muito provavelme­nte tanto na África quanto após a saída desse continente, nossa espécie e seu genoma foram moldados em um ambiente onde existia grande número de populações de Homo, umas mais semelhante­s do que as outras, que trocaram genes por milhares de anos. Somos o resultado desse processo de mistura.

A conclusão é de que nossa evolução está longe de ter sido linear

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