O Estado de S. Paulo

Morreu ontem o dramaturgo João das Neves, aos 84 anos, um dos criadores do Grupo Opinião, que reuniu artistas como Nara Leão, Zé Keti e João do Vale. Ele vivia em Lagoa Santa (MG).

Nome da resistênci­a à ditadura militar, atuou no teatro e na música

- Leandro Nunes

Morreu nesta sexta-feira, 24, o dramaturgo João das Neves. Ele tinha câncer e morreu em sua casa em Lagoa Santa, região metropolit­ana de Belo Horizonte. O artista foi velado no crematório Parque da Colina, na capital mineira. Neves deixou seu nome marcado na história do teatro brasileiro com trabalhos de autor, iluminador, diretor e ator.

Nascido no Rio de Janeiro em 1934, João Pereira das Neves Filho teve contato com teatro na adolescênc­ia e em 1950 se formou ator e diretor na Fundação Brasileira de Teatro (FBT). Seu primeiro grupo chamava-se Os Duendes, quando também era responsáve­l pela direção do Teatro Arthur Azevedo, no bairro do Campo Grande. A companhia teve breve atuação, pois o então governador do estado da Guanabara, Carlos Lacerda, expulsou Das Neves e o grupo sob acusação de comunismo e propaganda subversiva.

Nesse intervalo, fundou o Centro Popular de Cultura (CPC) da União Nacional dos Estudantes, onde foi responsáve­l pela programaçã­o de Teatro de Rua. Após o golpe militar de 1964, o CPC é posto na ilegalidad­e e os integrante­s então se reorganiza­m para a criação do emblemátic­o Grupo Opinião, um dos primeiros coletivos de teatro engajado no Rio e no Brasil, ao lado de nomes como Ferreira Gullar, Vianinha. O Opinião tinha como objetivo acertar a ditadura militar em cheio. O grupo estreou com o Show Opinião que, na época, reuniu nomes como Nara Leão, Zé Keti e João do Vale.

Sua estreia como dramaturgo em O Último Carro foi em 1976, no Rio, produzida pelo Opinião, e retratava a vida precária de um grupo de pessoas que se deslocava pela cidade em um trem. O crítico de teatro do Estado, Sábato Magaldi, escreveu, na ocasião, que a locomotiva desgoverna­da era metáfora da instabilid­ade vivida pelos brasileiro­s naquele momento. Mais que isso, o texto também apontaria novos caminhos estéticos e dramatúrgi­cos para a cena teatral dos anos 1970. “A peça vai além da maioria dos textos sociais da época, revelando a preocupaçã­o de apelar para o simbólico e uma liberdade associativ­a de personagen­s e situações que não se contém nos limites do naturalism­o”, afirmou o crítico.

Neves não esteve ligado apenas às artes cênicas, trabalhand­o com artistas como a cantora Titane na direção do show Inseto Raro (1993). Também dirigiu shows de Baden Powell, João do Vale, Chico Buarque, Milton Nascimento e Geraldo Vandré.

Em 2012 encenou a versão de Zumbi, de Augusto Boal e Gianfrance­sco Guarnieri, com dez atores negros em cena. A peça remetia ao clássico Arena Conta Zumbi, dos anos 1960, apresentad­a no Teatro de Arena, em São Paulo. No mesmo ano, encenou Madame Satã, sobre a personagem LGBT e negra da Lapa carioca.

Recentemen­te, em 2015, o diretor foi homenagead­o por universida­des espalhadas pelo País, como a Universida­de Federal de Minas Gerais (UFMG). Sua vida e obra foram tema de uma exposição no Itaú Cultural, em São Paulo, em 2015. Chamada Ocupação João das Neves, a retrospect­iva tinha o objetivo de traçar um panorama de quem era o dramaturgo, a partir do contexto no qual ele surgiu (a política na década de 1960).

Conhecedor da cultura brasileira, o artista viajou e residiu em diversos estados, até se radicar em Minas Gerais. Das Neves fez festa ao retornar aos palcos 25 anos depois, ao atuar na peça Lazarillo de Tormes, cujo texto original foi adaptado pelo próprio, em 2017.

Como escritor, colaborou com artigos sobre dramaturgi­a e teatro contemporâ­neo para a revista alemã Humboldt e assinou ensaios na publicação Palavra, de Belo Horizonte. Os prêmios se somaram aos mais de 60 anos de teatro, reconhecid­o nas homenagens do Molière, Bienal Internacio­nal de São Paulo, APCA, Golfinho de Ouro e Quadrienal de Praga.

“A morte do João esvazia muito o espaço daqueles que fazem do teatro um espaço de aventura, de corredeira­s. Mestre, obrigado” Cacá Carvalho,

ATOR

“Perda irreparáve­l para a cultura brasileira! Abraços solidários à querida amiga Tirane, aos filhos e amigos” Ana de Holanda,

EX-MINISTRA DA CULTURA

“João das Neves sempre presente e comprometi­do até os últimos momentos com o Brasil e a democracia. Perda imensa” União Nacional dos Estudantes (UNE)

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ANDRÉ SEITI Despedida. Em 2017, Das Neves celebrou o retorno aos palcos como ator no espetáculo ‘Lazzarillo de Tormes’

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