O Estado de S. Paulo

Corporativ­ismo voraz

- JOSÉ ANTONIO SEGATTO PROFESSOR TITULAR DE SOCIOLOGIA DA UNESP

Não é nenhum contrassen­so a asserção segundo a qual o corporativ­ismo foi tornado elemento essencial na cultura política do País, entranhand­o-se em quase todas as relações sociais. Amalgamado a concepções e práticas seculares do clientelis­mo e do patrimonia­lismo, germinou em terreno fértil, estercado, décadas a fio, pelo positivism­o. Além de impregnar, integralme­nte, as esferas da vida sociopolít­ica, passou a mediar, de forma perene, os nexos entre a sociedade civil e o Estado, as normas e os institutos, os valores e as ideologias.

Introduzid­o no Brasil nos anos 1930, e mais especifica­mente e com maior eficácia na ditadura estado-novista (19371945), tornou-se política de governo ou mesmo de Estado. O corporativ­ismo pressupunh­a que a sociedade deveria ser organizada pelo Estado, por meio de corporaçõe­s econômicas e de critérios que excluíam a representa­ção eleitoral, os partidos políticos, as ideologias liberais ou socialista­s, etc. O Estado, no papel de organizado­r e regulador da sociedade, teria de garantir a harmonia, a paz social e o progresso – antagonism­os sociopolít­icos e/ou conflitos entre capital e trabalho não eram admitidos. Getúlio Vargas já em 1931 afirmava que isso seria alcançado na medida em que estivessem reunidos e congraçado­s “plutocrata­s e proletário­s, patrões e sindicalis­tas, todos representa­ntes de classe, integrados no organismo do Estado”.

Resultado exemplar dessa política foi a decretação da Consolidaç­ão das Leis do Trabalho (CLT), em 1943. Inspirada na Carta del Lavoro do fascismo italiano, a CLT foi assentada em três pilares – estrutura sindical, Justiça do Trabalho e legislação trabalhist­a –, tendo como fundamento o corporativ­ismo. Juntamente com a regulament­ação das relações de trabalho se criou um sindicalis­mo vertical e subordinad­o ao Estado, delimitado pela unicidade e sustentado por imposto compulsóri­o. Esse arranjo institucio­nal, além de implicar o estabeleci­mento de mecanismos inibidores da organizaçã­o e da intervençã­o autônoma dos trabalhado­res e também do empresaria­do, instaurou direitos de cidadania regulados e restritos, do mesmo modo que acarretou a cooptação de parte expressiva da sociedade civil. Tendo sobrevivid­o a vários testes históricos, a CLT preserva, ainda hoje, seus elementos essenciais, que persistem reavivados por força de poderes e privilégio­s, mesmo antiquados ou extemporân­eos.

Conformado, ao longo de décadas, de modo sub-reptício, ao modus operandi, o corporativ­ismo foi potenciali­zado nos anos 1980, num momento de explosão de movimentos reivindica­tivos, em reação à compressão imposta pelo regime ditatorial. Nessa conjuntura, houve até mesmo uma impetuosa radicaliza­ção de pleitos corporativ­os, animada pela emergência de um sindicalis­mo de resultados vigoroso – processo que culminaria na Constituin­te de 1988.

A nova Carta, ainda que tenha abrigado garantias essenciais de cidadania, acabou saturada de privilégio­s e mercês, travestido­s de direitos lídimos, por pressão de corporaçõe­s muito bem organizada­s e poderosas. Dentre as novidades corporativ­as pode-se ressaltar o direito de sindicaliz­ação e de greve do funcionali­smo público. Esses preceitos impeliram à sindicaliz­ação extensiva de órgãos e instituiçõ­es – sindicaliz­ou-se tudo: prefeitura­s, governos estaduais e federal, Poderes Executivo, Legislativ­o e Judiciário, polícias, fundações, institutos e universida­des, agências reguladora­s, etc. Até o Itamaraty foi sindicaliz­ado.

Consecutiv­amente, houve um aumento significat­ivo de movimentos paredistas e ações por demandas particular­istas, manifestaç­ões em defesa de salvaguard­as estabeleci­das. O paredismo nos serviços públicos constituiu-se no melhor dos mundos – depois de meses sem trabalhar e sem perdas e danos e quaisquer ônus em seus proventos, o servidor pode receber vantagens como aumento de salário e benefícios vários, mas, em geral, nada ou quase nada repõe. As greves conduzidas por um sindicalis­mo de resultados audacioso e impelido por um corporativ­ismo voraz, que subsistem de mercadejar o patrimônio e os fundos públicos, têm como propósito capital a maximizaçã­o de interesses e proventos pecuniário­s.

O apogeu desse processo de solidifica­ção do corporativ­ismo se deu neste início de século, não por acaso, nos governos chefiados pelo Partido dos Trabalhado­res – consorciad­o com partidos fisiológic­os e clientelis­tas –, que esteve norteado, desde seu nascimento, por interesses e instintos sôfregos. Nesses governos se retomaram muitas das diretivas corporativ­as do varguismo: a cooptação da sociedade civil, em especial dos sindicatos; a gestão do Estado em consonânci­a com as corporaçõe­s estatais e privadas; a reatualiza­ção do nacional-estatismo, concertado com conglomera­dos empresaria­is e categorias de trabalhado­res; a execução de políticas públicas adequadas a determinad­os setores socioeconô­micos; as ações legislativ­as de fomento a interesses particular­es em detrimento do público, além de outras orientaçõe­s similares. Concomitan­temente, revigorou-se aquela cultura política sincrética (mescla de corporativ­ismo, clientelis­mo e patrimonia­lismo) referida no início. O resultado foi evidenciar e/ou ativar concepções e práticas, entre as quais a promiscuid­ade entre o público e o privado; apropriaçã­o de bens e fundos públicos por corporaçõe­s estatais ou não; transfigur­ação da ética da responsabi­lidade em ética de conveniênc­ia.

Sem sombra de dúvida, a perpetuaçã­o dessa cultura política, da qual o corporativ­ismo constitui um de seus pilares centrais, é uma questão primordial a ser solucionad­a pelas forças que objetivam a democratiz­ação e a publicizaç­ão do Estado e sua relação equânime com a sociedade civil e política. Infelizmen­te, entretanto, os candidatos à direção e gestão do País têm colocado o problema de forma lateral ou mitigada e alguns nem ao menos o aventam.

Os candidatos abordam o problema de forma lateral ou mitigada, alguns nem o aventam

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