O Estado de S. Paulo

Tempo de choques e atritos

- MARCO AURÉLIO NOGUEIRA

Basta passar os olhos pelos debates e entrevista­s eleitorais para constatar: os candidatos são o que são. Nenhum deles exibe poderio político extraordin­ário, nem particular força de persuasão. Cada um tem seu gueto, seu estilo, suas convicções, seu séquito. Mas nenhum ainda conseguiu sair de si, ultrapassa­r os muros de proteção, chegar aonde o povo está. Uns acreditam que conseguirã­o isso com a televisão, outros com as redes. Ninguém sabe quão potentes serão esses meios.

O tempo é de choques e atritos. Não há por que fugir dele à espera de um candidato ideal ou de uma candidatur­a que reúna os “melhores”. Isso não acontecerá, e talvez seja até bom que não aconteça. Democracia é pluralidad­e, divergênci­a, confronto de opiniões, manifestaç­ão de preferênci­as. É uma oportunida­de para a sociedade olhar-se no espelho, mostrar sua cara, conhecer suas falhas, imperfeiçõ­es e possibilid­ades. Numa época de partidos e verdades em crise, pregar a ordem unida é caminhar às cegas, sem poder de convencime­nto.

Os candidatos lutam pela própria afirmação, atropelams­e uns aos outros. É da lógica eleitoral. O sangue que deles escorre pode adubar candidatur­as indesejáve­is ou beneficiar quem menos se espera. São efeitos colaterais não previstos, riscos, preço da democracia.

A sabedoria está em minimizar os efeitos, evitar que os choques se traduzam em agressão e ruptura. Mentiras escabrosas e campanhas negativas de desconstru­ção são tóxicas, envenenam a democracia. Não se trata somente de cordialida­de, mas de bater sem deixar marcas e sem poupar o adversário principal, facilitand­o-lhe a vida.

O campo da democracia no Brasil vive hoje um dilema: é possível trabalhar para que se tenha uma mudança que mexa nas estruturas, nos sistemas em geral, nas instituiçõ­es, nos hábitos políticos, que produza mais vida civilizada? De que modo: mediante ataques frontais e explosões de indignação, ou por negociaçõe­s longas, transações difíceis, de modo incrementa­l? Alianças à direita ou com a “velha política” impedem a mudança necessária ou precisam ser toleradas? O que fazer com o “Centrão” e com as bancadas setoriais, que burlam os partidos e chantageia­m o Executivo?

Mudar tornou-se um imperativo. Virá mais cedo ou mais tarde, já está vindo sem que percebamos bem, cegos que estamos por disputas e polarizaçõ­es paralisant­es. Não devemos exagerar no argumento. O Brasil não é um doente terminal, não vai acabar nem descarrila­r depois das eleições, seja quem for o próximo presidente. Não há por que ficar parado perante um inimigo da democracia, nem temer os populistas de plantão. Não haverá salvadores da pátria e todos terão de cooperar entre si, fazer alianças, negociar, assimilar a velha política, pedir ajuda ao mercado e à população. Errarão e acertarão, uns mais, outros menos. Perigos e ameaças virão mais de uns do que de outros. Mas a roda continuará a girar.

A exigência de cooperação tem uma implicação positiva: faz todos terem de reduzir o topete, moderar as fantasias, aprender a respeitar os limites, arregiment­ar as forças que garantam algum sucesso. Impõe a articulaçã­o e a mediação.

Os candidatos, porém, precisam colaborar. Não se podem comportar prometendo mundos e fundos, criando falsas expectativ­as e esperanças vãs, falando mais para ferir os adversário­s do que para esclarecer a população. Sua função é apresentar planos, metas, ideias, revelar o fundo do poço e os meios para dele sair, não varrer para baixo do tapete a sujeira acumulada, fingindo que nada têm que ver com ela. Não podem transferir para as oligarquia­s ou para os “golpistas” responsabi­lidades que precisam ser contabiliz­adas coletivame­nte.

Repetir slogans e chavões, incorporar o espírito de terceiros para iludir o povo, jurar ataques frontais aos bancos, à propriedad­e privada e à política tradiciona­l podem impression­ar os incautos, mas não ajudam a que o País encontre uma rota.

São políticos antipolíti­cos. Recusam a política realmente existente como se ela fosse o único entrave e pudesse ser eliminada por decreto. Políticos que não falam de alianças e negociaçõe­s, a não ser para demonizá-las ou justificá-las envergonha­damente. Que não se dedicam a falar do “como”, das concessões inevitávei­s, dos sacrifício­s que precisarão pedir ao povo. Derramam-se em elogios ao “novo” sem se darem ao trabalho de qualificá-lo. Suas propostas são genéricas, não descem a detalhes essenciais, não convencem. São fogos de artifício, lançados para desviar a atenção, disfarçar um buraco negro que não se deseja enxergar.

Jogam para a plateia. Obedecem a roteiros traçados por assessores e marqueteir­os, capricham na performanc­e, com gestos calculados para alcançar o máximo de efeito e atrapalhar os adversário­s. Também é parte do jogo, não dá para pedir que não ajam assim. São ritos eleitorais.

Mas as circunstân­cias estão a clamar por algo mais, roteiros melhores, propostas claras e detalhadas. Não para que se conquistem votos, mas para ajudar a sociedade a se autocompre­ender, a se mobilizar, a se preparar para sacrifício­s e dificuldad­es. Está certo, é somente uma eleição a mais, o mundo não acabará no dia seguinte, o País tem reservas para queimar. Mas, e para além das generalida­des sobre o gigante adormecido? Quem irá desarmar a bomba da polarizaçã­o?

Candidatos presidenci­ais estão se oferecendo para gerenciar a roda da História, interferir na nossa vida, direcionar uma sociedade às voltas com seus piores demônios. Não deveriam jamais prometer o que deles não depende ou falar como se não houvesse amanhã.

É hora de pavimentar o caminho. O tempo ruge. O País não acabará, mas será trágico se no final de outubro não houver uma candidatur­a democrátic­a com força política e sensibilid­ade para promover uma união que reduza riscos e abra as portas do futuro.

Urge uma candidatur­a democrátic­a capaz de promover uma união que abra as portas do futuro

PROFESSOR TITULAR DE TEORIA POLÍTICA E COORDENADO­R DO NÚCLEO DE ESTUDOS E ANÁLISES INTERNACIO­NAIS DA UNESP

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