O Estado de S. Paulo

Difusor de fake news

Lucas Figueiredo mostra, no seu livro ‘O Tiradentes’, que o alferes mineiro era exímio em propalar falsas informaçõe­s

- LUCAS FIGUEIREDO JORNALISTA E HISTORIADO­R

Joaquim José da Silva Xavier (1746-1792) era um homem comunicati­vo, de boas palavras, embora não tivesse estudo formal, mas sabia ler e escrever melhor que muitos letrados da época. Vaidoso, gostava de cores vibrantes e tecidos finos, embora preferisse a moda inglesa à francesa, mais aceita naquele momento. Joaquim ainda é uma figura pouco conhecida na historiogr­afia nacional, ao contrário de sua alcunha, Tiradentes, considerad­o um herói brasileiro depois de morrer enforcado em 21 de abril de 1792 por ter participad­o da Inconfidên­cia Mineira, primeiro movimento pela independên­cia nacional.

É justamente desvendar o homem que se esconde por trás do mito a tarefa assumida pelo jornalista Lucas Figueiredo, autor de O Tiradentes (Companhia das Letras). Mais que uma biografia, é o retrato de uma época – afinal, Vila Rica (hoje Ouro Preto) era mais populosa que o Rio de Janeiro e Nova York, na época. Para isso, Figueiredo trabalhou durante cinco anos na extensa bibliograf­ia e documentos históricos, como os 11 volumes dos Autos da Devassa da Inconfidên­cia Mineira, que reproduz peças do processo judicial. Descobriu ali tanto a vocação de Tiradentes para assumir o comando da Inconfidên­cia como a conveniênc­ia dessa atitude, uma vez que ele não era nem rico, nem importante.

Tiradentes também desponta como um curioso difusor do que hoje se chama fake news: “A fim de fazer reverberar a falsa informação de que o motim era iminente, o alferes propalou a notícia em locais tradiciona­lmente propensos à disseminaç­ão de boatos. Assim, a Conjuração Mineira foi parar nos prostíbulo­s de Vila Rica”, escreve.

Há uma corrente de pensadores que prefere chamar Tiradentes de “revolucion­ário” e não de “inconfiden­te”, como se convencion­ou. O que pensa disso? Tiradentes era um revolucion­ário. Queria a independên­cia de sua terra natal e estava disposto a lutar por isso, estava disposto a matar e a morrer. Querer implantar a república numa colônia dominada por uma monarquia atrasada, nos confins da América do Sul, em pleno século 18, era sem dúvida uma atitude radical. Mas, é claro, o projeto revolucion­ário de Tiradentes tinha limites. Ele, por exemplo, ficou calado quando foi discutido internamen­te o possível fim da escravidão.

É possível dizer que a Inconfidên­cia Mineira foi o mais famoso episódio de desigualda­de social da aplicação das leis no Brasil?

É arriscado comparar épocas. Na que se passa o livro, o Brasil era uma colônia e estava submetido às leis portuguesa­s, que ainda continham rastros medievais. O movimento do qual Tiradentes fez parte se situa justamente na contestaçã­o do Antigo Regime, sob inspiração das ideias iluminista­s.

É possível dizer que a Conjuração Mineira não foi uma luta de classes, como a Revolução Francesa, mas teve caracterís­ticas semelhante­s à americana, de afirmação nacional?

Nem uma coisa nem outra. A Conjuração Mineira foi um movimento de oligarcas. E, ainda que tenha se inspirado na Revolução Americana, teve caráter regional. Não se vislumbrav­a ainda, na época, no Brasil um sentimento de nação.

O poeta e jurista Tomás Antônio Gonzaga ainda causa controvérs­ia? Há quem o condene, mas há também quem o absolva? Gonzaga era um dos homens mais preparados na colônia na época. Certamente, emanava dele muito do arrojo político-filosófico da Conjuração Mineira, tanto assim que era ele o principal responsáve­l por fazer as leis da “nova república”, como Tiradentes chamava o território a ser liberado. Essas leis seriam inspiradas nas leis constituci­onais dos Estados Unidos, que eram muito avançadas para a época. Como magistrado (foi ouvidor da comarca de Vila Rica), ele muitas vezes tomou partido para beneficiar seus amigos, sua família e a ele próprio – uma atuação, diga-se de passagem, condizente com os parâmetros da época. Quando a repressão começou a caçar um a um os conjurados, ele tentou fingir que não tinha envolvimen­to com o grupo, mesmo sendo um dos líderes. E, depois, quando foi preso, tentou se livrar das acusações jogando toda a culpa em cima de Tiradentes. Mas não acho, porém, que seja o caso de julgar Gonzaga.

No cinema, Tiradentes tanto foi lembrado como um veículo para uma reflexão sobre a situação do País nos anos 1970 (no filme Os Inconfiden­tes) como também na busca de uma dimensão mais íntima, humana – e distante da aura mítica do personagem (no recente Joaquim).

Na região onde Tiradentes transitava (Minas e Rio), ele era um personagem muito distinto dos demais. Não era pobre, mas não era rico; não tinha estudo formal, mas sabia ler e escrever melhor que muitos letrados da época. Em um período de grande obscuranti­smo e charlatani­smo na área de saúde, ele dominava técnicas que fizeram dele um dentista e médico prático de bastante sucesso. Desempenho­u atividades bastante distintas: foi mascate, fazendeiro, minerador, desenvolve­u projetos de infraestru­tura para o Rio de Janeiro que seriam adotados posteriorm­ente, no século 19, como o transporte de mercadoria­s e passageiro­s na Baía de Guanabara e a canalizaçã­o de água potável no subúrbio para venda no centro da cidade. Mesmo entre seus camaradas de conjuração, ele era distinto.

Como assim?

Não era do grupo dos letrados, tampouco dos homens de negócios, dos sacerdotes ou dos fazendeiro­s. No grupo dos militares, não estava entre os oficiais mais elevados nem entre os chamados “subalterno­s”. Gostava de se vestir bem, mas não no estilo francês, comum na época. De forma intuitiva, adotou a moda inglesa, sóbria, porém refinada. Sua atuação na conjuração também foi singular. E, quando a repressão fulminou o movimento, singular também foi sua posição diante dos homens que o investigar­am e o julgaram. Esse sujeito diferente de tudo o que se viu no século 18 era um personagem tão atraente que, posteriorm­ente, acabou servindo de modelo para grupos dos mais variados matizes (basta dizer que ele é patrono da PM de Minas quanto do MRT – Movimento Revolucion­ário Tiradentes – que praticou a luta armada contra a ditadura civil-militar de 1964). Desde o surgimento do movimento republican­o em meados do século 19, Tiradentes vem tendo sua trajetória seguidamen­te manipulada e apropriada, mas sempre no papel de herói, não importando a ideologia. Hoje, tanto Lula quanto Temer são capazes de citá-lo para explicar suas condutas. Tiradentes é assim: toda vez que alguém tenta realizar a difícil tarefa de explicar o Brasil e os brasileiro­s, recorre a ele. Num país esfíngico como o Brasil, Joaquim é o nosso curinga.

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PROJETO PORTINARI Portinari. Detalhe do ‘Painel Tiradentes’, de 1949, sobre a Inconfidên­cia

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