Não desabem o teto
Oteto de gastos, dispositivo constitucional que limita, por dez anos, desde 2017, o crescimento das despesas primárias da União, virou o saco de pancadas dos candidatos à Presidência da República. Até Geraldo Alckmin, pertencente a um partido que, em tese, tem forte compromisso com o ajuste fiscal, vem titubeando em sua defesa.
Um dos maiores equívocos é considerar que, quando o teto não puder ser obedecido, terá fracassado. Ocorre que é exatamente nessa situação que suas vantagens aparecem. Em primeiro lugar porque coloca, de forma clara, a limitação de recursos, e com isso força Executivo e Legislativo a buscarem soluções estruturais para corrigir o crescimento do gasto público como proporção do PIB. O conflito distributivo fica explícito. Dado que a carga tributária brasileira já é alta demais quando comparada a países com nível de renda semelhante, a questão crucial é o que cortar quando surge a necessidade de aumentar recursos para educação, saúde, combate à pobreza, investimentos, etc.
Além disso, quando o teto for rompido é disparada uma série de ajustes compulsórios nas despesas públicas, até que se corrija a situação, com vedação de gastos como concessão de vantagem, aumento, reajuste ou adequação de remuneração salarial, criação de cargo ou função que implique aumento de despesa, contratação de novos funcionários públicos, concessão de benefícios salariais de qualquer natureza, criação de despesas obrigatórias, ampliação de gastos com subsídios e subvenções, aumento de incentivos ou benefícios tributários, entre muitos outros. Esse conjunto severo de restrições certamente aumentará muito a viabilidade política de aprovar reformas fiscais que corrijam de forma estrutural o descontrole fiscal.
Argumenta-se também que congelar as despesas em termos reais por período tão longo não é uma forma eficiente de fazer política fiscal. Pode ser. Mas esse raciocínio peca em dois pontos importantes.
O primeiro é que as despesas não são congeladas por tipo, mas no total, podendo ser remanejadas. Como foi dito, o objetivo maior é forçar o debate da alocação dos recursos públicos.
O segundo é que as finanças públicas brasileiras podem ser perfeitamente comparadas com um organismo em hemorragia. Nessa situação, o que se faz, antes de qualquer medida mais eficiente a longo prazo, é estancar a perda de sangue, para que o paciente não morra. Em 2018, o déficit primário do governo federal deverá alcançar R$ 159 bilhões (2,3% do PIB). Uma simulação simples, admitindo juro real de 4% ao ano e crescimento econômico de 2% ao ano, mostra que para estabilizar a relação dívida pública bruta/PIB no patamar atual (84%, conceito FMI), que já é altíssima, seriam necessários superávits primários de 2% do PIB ao ano, ou seja, um ajuste gigantesco.
Se não se estancar tal hemorragia, o País voltará para a inflação dos anos 80 e da primeira metade dos anos 90, do século passado, quer dizer, mais desigualdade, aumento da pobreza e redução do crescimento econômico. Como diz Samuel Pessôa, uma maneira pior que essa para acomodar o conflito
Se não estancarmos a hemorragia das finanças públicas, o País voltará à inflação dos anos 80
distributivo, só a guerra civil.
Por que então, por exemplo, não retirar investimentos do teto, que por não serem gastos obrigatórios nem protegidos por vinculações são as verbas mais prejudicadas pela medida? Simplesmente porque “por onde passa um boi passa uma boiada”. Logo aparecerão os defensores da exclusão também de educação, saúde, programas sociais, segurança e tantas outras necessidades prementes da população.
Se o limite de gastos cumprir sua missão e viabilizar a aprovação das reformas estruturais, deixará de ser necessário. Por ora, é prudente não mexer com ele. O teto pode desabar e ferir muita gente, principalmente os mais pobres, que não conseguem se defender da inflação.
ECONOMISTA, DIRETOR-PRESIDENTE DA MCM CONSULTORES, FOI CONSULTOR DO BANCO MUNDIAL, SUBSECRETÁRIO DO TESOURO NACIONAL E CHEFE DA ASSESSORIA ECONÔMICA DO MINISTÉRIO DA FAZENDA