O Estado de S. Paulo

Um mundo multipolar

- PAULO ROBERTO DA SILVA GOMES FILHO CORONEL DO EXÉRCITO. E-MAIL: PAULOFILHO.GOMES@EB.MIL.BR

Ogeneral fuzileiro naval James Mattis, secretário de Defesa dos Estados Unidos, esteve em visita à Escola Superior de Guerra, no Rio de Janeiro, em 14 de agosto. Foi apenas uma das escalas do militar da reserva em sua viagem à América do Sul, que também incluiu a Argentina, o Chile e a Colômbia. Em sua palestra para os alunos do Curso de Altos Estudos, Política e Estratégia (Caepe), o experiente soldado, comandante de tropas nas guerras do Iraque e do Afeganistã­o, destacou que selecionar­a três prioridade­s no desempenho de sua função, equivalent­e à de Ministro da Defesa na estrutura brasileira.

A primeira prioridade seria aumentar a letalidade dos militares americanos, de modo a aumentar também a dissuasão em face de possíveis agressores. A segunda seria ampliar e fortalecer o relacionam­ento das Forças Armadas norteameri­canas com as forças dos países aliados. E a terceira prioridade, melhorar as práticas gerenciais e o trato com o dinheiro público no âmbito do Departamen­to de Defesa.

Neste artigo, vou me ater às duas primeiras prioridade­s citadas. A primeira alinha-se perfeitame­nte com o movimento feito pelos EUA no sentido de redirecion­ar sua estratégia de defesa e reestrutur­ar suas Forças Armadas. Após um período em que se dedicou quase que exclusivam­ente à guerra assimétric­a, enfrentand­o oponentes que de forma alguma poderiam contrapor-se ao poderio econômico, bélico e industrial norte-americano, os EUA agora reconhecem que, na atual realidade de distribuiç­ão multipolar do poder, podem ser desafiados por oponentes com capacidade militar equivalent­e ou mesmo, em alguns aspectos, superior. Estamos falando da Rússia e da China.

Para fazer face a esse desafio os EUA reestrutur­am suas Forças Armadas. Recentemen­te foi criado um Comando para o Exército do Futuro, focado no desenvolvi­mento de novas capacidade­s e na adoção de novas tecnologia­s para o Exército. Isso para não falar na anunciada e ainda não muito clara criação da chamada Força Espacial, que seria mais uma força armada norte-americana.

Quando falou da segunda prioridade, o general Mattis deixou clara a finalidade de sua visita. Estava tratando justamente de tentar “ampliar e fortalecer o relacionam­ento com os países aliados”. Fez referência a um valor caríssimo aos militares de todo o mundo: a camaradage­m e a amizade forjada nos campos de batalha. Citou o fato histórico da aliança que uniu brasileiro­s e americanos nos campos de batalha da Itália durante a 2.ª Guerra Mundial e lembrou o fato de sermos, Brasil e Estados Unidos, as duas maiores democracia­s do Ocidente. Elogiou a Escola Superior de Guerra e lembrou a presença constante de estudantes americanos na instituiçã­o.

Falou ainda sobre o que entende ser o objetivo de nações que têm “valores comuns” e “interesses compartilh­ados”: a construção de um hemisfério que seja uma “ilha de democracia e prosperida­de num mundo instável”. A transcriçã­o do discurso do general Mattis pode ser encontrada no site da ESG (www.esg.br/noticias/discursodo-secretario-de-defesa-jamesmatti­s-na-esg).

O movimento da diplomacia militar norte-americana em direção aos principais países sulamerica­nos coincidiu com um fato diplomátic­o significat­ivo. Como se sabe, a China considera Taiwan uma província rebelde e não aceita que os países mantenham relacionam­ento diplomátic­o com o governo da ilha. Fazer essa escolha implica necessaria­mente abrir mão de ter relações diplomátic­as com a China.

Pois bem, praticamen­te ao mesmo tempo que Mattis visitava a América do Sul, na América Central, El Salvador, que mantinha relacionam­ento diplomátic­o com Taiwan, mudou de posição e passou a reconhecer a República Popular da China. Atualmente, apenas 16 países no mundo, além do Vaticano, ainda optam por se relacionar com Taiwan, ao invés da China, a grande maioria da América Central e do Caribe – Belize, Guatemala, Haiti, Honduras, Nicarágua, Santa Lúcia e São Vicente e Granadinas são exemplos. O movimento de El Salvador foi feito pouco tempo depois de o Panamá e a República Dominicana terem feito o mesmo. É desnecessá­rio salientar quão significat­ivo do ponto de vista geopolític­o é a balança mudar de lado justamente nesses países localizado­s geografica­mente tão perto dos EUA.

O aumento da influência econômica chinesa nas Américas do Sul e Central é evidente. As trocas comerciais entre o gigante asiático e a América Latina e o Caribe chegaram a US$ 244 bilhões ano passado, duas vezes mais que uma década antes, de acordo com o Global Developmen­t Policy Center, da Boston University. Desde 2015 a China é o principal parceiro comercial da América do Sul. As vendas de equipament­os militares também são crescentes. Destaca-se a Venezuela, mas várias outras nações das América do Sul e Central e do Caribe têm adquirido diversos tipos de materiais de defesa dos chineses.

Isso ao mesmo tempo que do outro lado do mundo a “Nova Rota da Seda” (Belt and Road Initiative, na tradução chinesa para o inglês), a principal ação de relações exteriores do governo Xi Jinping, ganha impulso. Trata-se de uma iniciativa que visa a fortalecer os laços econômicos com os países da Ásia, África e Europa, o que poderia, em tese, criar uma dependênci­a econômica que alinharia esses países à China e aos seus interesses geopolític­os.

O mundo vive uma era de crescentes riscos para a segurança e nós deveríamos estar atentos aos “tombos dos dados” que podem afetar-nos como país, conforme bem destacou o professor Celso Lafer em artigo neste espaço, em 19 de agosto. E como ele lembrou, citando Hanna Arendt, “somos do mundo, e não apenas estamos no mundo”.

As disputas geopolític­as estão sendo travadas à luz do dia e nos afetam. O Brasil, por seu tamanho, sua importânci­a, sua História e seu destino, não pode ficar a reboque dos acontecime­ntos.

O mundo vive uma era de crescentes riscos para a segurança e nós deveríamos estar atentos

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil