O Estado de S. Paulo

Com protestos e bate-boca, tensão vira rotina nas ruas de Pacaraima

Passeata de moradores terminou em ataque a abrigo de estrangeir­os. Comerciant­es reclamam de inseguranç­a na área

- Felipe Resk ENVIADO ESPECIAL/PACARAIMA (RR) / COLABOROU C.C.

Em vídeo gravado ontem, uma senhora brasileira discute com um grupo de venezuelan­os. “Somos seres humanos”, grita um imigrante, de mochila nas costas. “Brasileiro não vai lá para roubar”, ela responde. O agravament­o da crise migratória fez brasileiro­s e venezuelan­os viverem sob clima de tensão em Pacaraima, cidade de apenas 12 mil habitantes na fronteira com a Venezuelan­a. Às vistas de todos, grupos chegam a bater boca no meio da rua. Alegando preferênci­a de atendiment­o aos refugiados e suposta escalada da violência, moradores também já realizaram cinco protestos.

O Estado esteve em Pacaraima na semana passada. No centro urbano, é mais comum ouvir pessoas conversand­o em espanhol do que em português. Por lá, calcula-se que o número de refugiados já seria maior do que a quantidade de brasileiro­s que vivem em áreas de demarcação indígena, cerca de 5 mil. Com a chegada dos imigrantes, a produção de lixo, por exemplo, aumentou cerca de 70%. Não há aterro sanitário. Sem postos de combustíve­l, os moradores também precisam cruzar a fronteira para abastecer. Também vem da Venezuela o fornecimen­to de energia elétrica.

“Não tem mais recuperaçã­o”, diz José Carlos Barbosa, de 52 anos, dono de um pequeno armazém no centro de Pacaraima. Ele culpa os venezuelan­os por uma suposta onda de furtos – semconfirm­ação oficial.

Funcionári­a de Barbosa, a venezuelan­a Elienny Romero, de 32 anos, também é da opinião que os compatriot­as estariam criando uma crise na cidade. “A maioria das pessoas daqui está se aproveitan­do dos brasileiro­s”, diz. Dezenas de venezuelan­os passam o dia sentados nas calçadas, olhando as lojas. Outros pedem esmola. Muitos, entretanto, estão só de passagem: na rodovia para Boa Vista – federal, agora sob atenção das Forças Armadas – é possível ver refugiados viajando mais de 200 quilômetro­s a pé até a capital.

Recentemen­te, os refugiados haviam montado um acampament­o que ocupava ao menos duas quadras do centro de Pacaraima. Elas foram destruídas em um “ato” no sábado passado. O episódio aconteceu depois de o comerciant­e Raimundo Nonato de Oliveira, de 55 anos, ter sido assaltado, torturado e reconhecid­o os criminosos como venezuelan­os. O Ministério Público de Roraima investiga, ainda, se a vítima deixou de receber atendiment­o médico adequado, após a ambulância demorar a socorrê-lo.

Com o “protesto”, cerca de 1,2 mil venezuelan­os deixaram o Brasil e o número de imigrantes caiu. Hoje, grupos de refugiados chegam a cruzar a fronteira para Santa Elena à noite para dormir em segurança. De dia, voltam para Pacaraima. “Está violento da parte dos brasileiro­s”, diz Adrian Barrios, morador de Santa Elena. “Eles não entendem que os venezuelan­os são refugiados e, por isso, devem receber proteção internacio­nal. Estão muito intolerant­es, não entendem a situação.”

Antes do episódio, os moradores de Pacaraima haviam feito três manifestaç­ões pacíficas para “alertar autoridade­s”. Há uma semana, carros e motos voltaram a fazer um buzinaço na cidade, em novo protesto. “Não somos selvagens”, diziam os cartazes. “Não somos xenófobos, só não aguentamos mais a situação”, é a frase mais comum entre os moradores.

Repercussã­o. Ontem, a decisão de envio de tropas federais e uma nova fase de interioriz­ação de imigrantes não reduziram esse sentimento de abandono. “Do que adianta tirar esses quase mil (em vários meses), se chegam 700 por dia”, criticou em Boa Vista o servidor público Aquilino Duarte Monteiro. “Eles (os soldados) só vão impedir os brasileiro­s de fazer alguma manifestaç­ão”, completou a assessora de imprensa Raniele Carvalho.

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