O Estado de S. Paulo

Renascida aos 30 anos

Julia Branco cria carta aberta à vida adulta em estreia solo

- Pedro Antunes

Aos poucos, a chuva aumentava. Também aos poucos, parecia crescer a figura de Julia Branco na estreia do seu primeiro disco solo, no palco montado no Mirante Beagá, em Belo Horizonte. A vocalista da banda Todos os Caetanos do Mundo jogava em casa: era uma apresentaç­ão na sua cidade, em um festival com espaço para a música de qualidade brasileira, o Breve Festival, e, curiosamen­te, pouco depois dela, se apresentar­iam quase todos os Caetanos do mundo – ou melhor, Caetano, Moreno, Zeca e Tom Veloso – com o show Ofertório.

Nesse duelo entre presença da artista em chamar o público para perto de si e chuva que o afugenta, no início da noite de domingo, 26, é possível dizer que Julia viveu um roteiro do filme Rocky II,

estrelado por Sylvester Stallone. Quase perdeu, mas, num assombro de energia nos últimos instantes, como o personagem-título da série de filmes sobre um lutador de boxe, tornou-se vitoriosa.

A estreia de Soltar os Cavalos,

álbum realizado com o auxílio do edital Natura Musical, lançado recentemen­te, fez com que o público deixasse as áreas cobertas e distantes do palco montado no festival mineiro e se avolumasse diante de Julia e sua banda (um trio, na verdade, formado por Luiza Brina e o incrível Chico Neves, produtor de nomes como Arnaldo Antunes, Nando Reis, Los Hermanos e Lô Borges).

Mérito das 11 canções que integram o primeiro álbum de Julia, que tratam justamente de sobreviver aos impediment­os que a vida coloca diante de nós para causar alguns tropeços. Soltar os Cavalos é, principalm­ente para Julia, um álbum sobre viver os 30 anos, uma carta à mulher que ela foi e à mulher que ela viria a ser após a virada de década de vida. Fala de feminismo, de vulnerabil­idade, de ter medo – porque ter medo não é ruim, como ela diz.

Se uma frase do álbum pode descrever Soltar os Cavalos, de acordo com a própria artista, é também a primeira que se ouve ao dar o play . “Sou forte, sou grande, sou do tamanho do medo”, canta Julia em Sou Forte, uma canção de escolhas sonoras sombrias, feitas para criar o medo de se estar no escuro, num espaço vazio. “É um álbum que trata também da vulnerabil­idade”, reflete a artista. “Não nega o medo, não finge que ele não existe. Só diz que é do mesmo tamanho do medo, para seguir adiante.”

Soltar os Cavalos nasceu de uma necessidad­e, embora ela não soubesse identifica­r qual era. De início, contudo, lá em 2016 ainda, buscou composiçõe­s de outros artistas, reuniu algumas ideias. Chico Neves, com quem ela havia trabalhado no disco da Todos os Caetanos do Mundo, chamado Pega a Melodia e Engole, de 2015, achou um absurdo Julia precisar de composiçõe­s dos outros. “Eu ainda estava vivendo um processo”, ela explica. “E sentia falta do teatro.”

E aí está a genialidad­e de Neves. Ao saber que Julia, também atriz, sentia falta do ambiente e da arte de roteirizar e interpreta­r, ele sugeriu que Julia escrevesse um roteiro daquilo que seria Soltar os Cavalos. Com isso, o álbum se tornou um reflexo muito direto daquela transforma­ção que vivia Julia no ano de 2016. Ela havia completado 30 anos.

Ela entregou um punhado de textos, canções, rascunhos a Neves, encadernad­o como um roteiro, mesmo. Era um manifesto sobre ser mulher, sobre mudança, sobre a vida adulta, entrelaçad­o por canções e faixas faladas por Julia, um retrato do momento vivido pela artista – quem acredita em astrologia sabe que ela vivia o retorno de saturno. Das faixas faladas, 30 Anos e Coisas são retratos tão fiéis que emocionam – Eu Toco é outra que merece ser ouvida. No disco, Julia Branco tem mais companhias além de Chico Neves (também produtor) e Luiza Brina, ambos arranjador­es. Sobre os Cavalos também se tornou um álbum-visual no qual seis diretoras deram forma de videoclipe a também seis canções.

Soltar os Cavalos foi chamado por muita gente de “soltando os cavalos”. O gerúndio representa ação. Contínua. Movimento. Porque é isso, mesmo. “Ainda estamos passando por esse processo. É um cresciment­o, não é?” Como daquela artista que enfrentou o medo. O medo da chuva que ameaçava e caiu em Belo Horizonte no show de estreia. Não era maior que o medo. Era do tamanho dele. E o venceu.

SHOW DE JULIA BRANCO

Centro da Terra. R. Piracuama, 19, Perdizes, tel.: 3675-1595. Amanhã (30), às 20h. R$ 30. Participaç­ão de Aíla.

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FLORENCE ZYAD Renascida. Julia se descobriu compositor­a
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JULIA BRANCO ‘Soltar os Cavalos’Natura Musical; R$ 20 (plataforma­s digitais)

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