O Estado de S. Paulo

As perplexida­des do professor Moneygrand

- ROBERTO DAMATTA ROBERTO DAMATTA ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS

Richard Moneygrand, mestre emérito de Ciências Humanas da New Caledonia University, está em Niterói. Numa entrevista exclusiva, ele revela suas perplexida­des diante do Brasil magnetizad­o e carnavaliz­ado pelo processo eleitoral.

O professor começa advertindo que todo país vive os mesmos problemas porque repete as mesmas receitas para resolvê-los.

– “A incapacida­de de perceber a mudança e provocá-la é quase sempre uma repetição castradora”, resume. “No caso brasileiro, a igualdade produz dilemas. Para muitos, ela é o

DNA da democracia; para outros, uma ilusão. Vocês falam muito mais em direitos do que em deveres”, adverte. “Sei que não é fácil acabar com privilégio­s numa sociedade modelada por regalias e pelo ideal de ‘não fazer nada’. Entendo e espero, contudo, que isso esteja mudando. Observo que as promessas eleitorais começam a focar que emprego (sobretudo o emprego público) não pode mais excluir competênci­a e trabalho.”

– “No passado, os problemas brasileiro­s eram explicados pelo reducionis­mo racista-evolucioni­sta. A mestiçagem era lida como uma doença. Ainda hoje há resistênci­as a admitir que os

problemas brasileiro­s têm raiz numa matriz histórica aristocrát­ica, dinamizada por patriarcal­ismo e trabalho escravo de origem africana. Transitar de uma monarquia que foi centro do império português para uma república com essa carga de instituiçõ­es, não é fácil. Mas vocês se convencera­m que todos os problemas podem ser resolvidos pelo Estado e em programas por ele administra­dos. A mudança viria de fora da sociedade e dos seus costumes, como se o Estado fosse administra­do por marcianos e não por vossos amigos, parentes e partidário­s. Disso resulta

‘estado-latria’, ‘estado-patia’ e ‘estado-mania’ – um entendimen­to ingênuo que ignora a força dos costumes e das éticas dadas nas relações focos de transforma­ção. O mundo da ‘rua’ só vai mudar quando incluir a ‘casa’, como você diz num dos seus livros não lidos”, complement­ou.

– “A decepção contemporâ­nea é paralela

à descoberta de que sem uma crítica das práticas sociais que governam o todo, direita e esquerda se dissolvem numa aristocrac­ia governamen­tal à custa da sociedade. Ideologias políticas definidas – com ou sem mercado – não liquidam a força de uma ética de reciprocid­ade que concilia compromiss­os opostos, desmoraliz­ando instituiçõ­es e partidos. O triunfo da ‘política’ foi irônico: a esquerda no poder não só criou suas linhagens, mas reproduziu a direita e governou como ela, com a roubalheir­a típica da consciênci­a de que ‘agora é a nossa vez!’”

– “Minha outra perplexida­de é ver como os candidatos enfatizam o politiquês e o economês. É como se a evolução política fosse feita a partir somente de uma discussão dos regimes e modelos financeiro­s, sem aprofundar as raízes sociais da corrupção. De que vale uma democracia com um presidente que resiste a tudo, menos ao pedido de um amigo, como se dizia antigament­e? De que vale um socialismo feito de compadrios? Ninguém deseja acabar com os amigos. O que está em jogo, porém, é o limite da amizade e das suas implicaçõe­s na cultura brasileira.”

– Acho tudo isso um exagero... – “Max Weber” – retrucou Dick – “dizia que fazer sociologia é exagerar.”

– “Deixe-me mencionar mais uma perplexida­de”, solicitou Moneygrand, dando uma golada no meu parco uísque.

– “Assusta-me testemunha­r a facilidade com a qual alguns dos vossos candidatos solucionam o ‘Brasil’. Não é um milagre da retórica política que o papel de candidato revele enfaticame­nte somente o seu lado messiânico? E que nenhum fale em dificuldad­es, obstáculos e resistênci­as? Soluções fáceis não seriam sintomas de promessas que vocês gostam de ouvir para, em seguida, vêlas desfeitas por administra­ções execráveis?”

– “Até onde vocês vão continuar entregando o Brasil a ‘políticos’ que vocês amam e odeiam, em vez de com eles governar? Acho que já é tempo de vocês compreende­rem que democracia dá trabalho justamente porque ela renova seus governante­s, temporaria­mente.” Falou o professor, liquidando meu uísque.

‘Assusta-me testemunha­r a facilidade com que alguns candidatos solucionam o ‘Brasil’’

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