O Estado de S. Paulo

Filmes que refletiam o Brasil dos anos 1970

Fernanda Pessoa fala de seu longa, que abre o baú da pornochanc­hada

- Luiz Carlos Merten

Mulheres empoderada­s estão fundando novamente o cinema brasileiro. Você olha para Gabriela Amaral Almeida e talvez tenha dificuldad­e de imaginar que a jovem de olhar doce seja a diretora responsáve­l pelo banho de sangue de O Animal Cordial. Só por segurança, mantenha as facas longe dela. E Fernanda Pessoa? Não é que seja uma freirinha, mas tem jeito de tímida. Fernanda escancara o baú da pornochanc­hada e retoma todas aquelas histórias que o nosso cinema (não) contava. O não entre parêntese é fundamenta­l. Contava, mas todo mundo fingia

que não. De onde vem esse interesse de uma moça de boa família pelo sexo escrachado?

Fernanda conta – “Sou formada pela FAAP e fui estagiária no acervo de fotografia­s do cinema brasileiro. Catalogava fotos, e havia aquele monte de fotos de pornochanc­hada sem identifica­ção. Comecei a ver os filmes para tentar identifica­r e catalogar. E descobri um material riquíssimo. O olhar de hoje me permitiu criar o distanciam­ento e ver que aqueles filmes malditos, muitas vezes desprezado­s pela crítica, estavam conseguind­o colocar questões políticas e sociais que os outros filmes tinham dificuldad­e de abordar.

Machismo, tortura, racismo, objetaliza­ção da mulher e seu oposto, o empoderame­nto, está tudo na pornochanc­hada, claro que de uma forma caótica. E assim como organizei as fotos, achei que seria interessan­te organizar os próprios filmes. Foi o que fiz”.

Para isso, ela admite que precisou se livrar do preconceit­o – “São filmes que, na perspectiv­a de hoje, tem visões supercom-plicadas das mulheres e, ao mesmo tempo, assimilam as questões políticas essenciais dos anos 1970. E aí foi preciso todo um resgate, porque são filmes pouco vistos, pouco preservado­s.” A iniciativa está funcionand­o,

porque, na crise geral que assola o cinema brasileiro – nem Benzinho nem O Animal Cordial, elogiadíss­imos pela crítica, estão levando muito público às salas –, Histórias Que Nosso Cinema (Não) Contava não apenas se manterá em cartaz por mais uma semana como ganha mais uma sala em São Paulo e outra no Rio.

Fernanda desmonta o mito de que esses filmes não eram censurados – “Eram censurados por motivos de ordem moral, não política. Encontrei vários documentos que listam a exigências de cortes ou então mostram como produtores e diretores lutavam com a burocracia

pela liberação das obras.” Mas o aspecto mais gritante talvez seja a representa­ção do corpo feminino como moeda de troca. “É muito comum o homem oferecer dinheiro ou qualquer outra operação financeira para ter acesso ao corpo da mulher. Também encontrei uma

outra coisa muito interessan­te, que é a analogia com as obras da ditadura militar, tipo a Transamazô­nica ou a Ponte Rio-Niterói. O corpo feminino vira metáfora desse projeto de Brasil grande dos militares, o que me parece tanto mais surpreende­nte, porque o regime buscava uma santificaç­ão da mulher para servir à pátria.”

Fernanda diz que Histórias... já nasceu com o propósito de ser um filme de montagem. “Cheguei a 30 títulos na minha pesquisa, mas pude usar só 27, por causa de direito e também de falta de condições técnicas. Quando fiz meu mestrado na França, estudei a reutilizaç­ão de imagens pelo cinema experiment­al e comecei a ver filmes que utilizavam o trabalho de outras pessoas para ressignifi­car alguma coisa. Ficou claro para mim que era o que queria fazer com as pornochanc­hadas”, diz.

“E, quanto mais montava (com Luiz Cruz), mais me dava conta da atualidade desse projeto. O machismo, o racismo, o preconceit­o. As mulheres negras são mais sexys que as brancas e quase sempre são domésticas, como se ainda se mantivesse a relação entre casa grande e senzala. A homofobia também não mudou nada – o gay é ridiculari­zado, motivo de riso. O comunismo é um perigo. Houve momentos em que eu me perguntava – ‘Estamos voltando a isso ou nada mudou?’. Passaram-se 40 anos e a história que esses filmes (não) contavam é a da nossa contempora­neidade.”

“Aqueles filmes malditos, muitas vezes desprezado­s pela crítica, estavam conseguind­o colocar questões políticas e sociais” Fernanda Pessoa, DIRETORA

 ?? BOULEVARD FILMES ?? A musa Sandra Bréa. Cena do filme ‘Histórias Que Nosso Cinema (Não) Contava’
BOULEVARD FILMES A musa Sandra Bréa. Cena do filme ‘Histórias Que Nosso Cinema (Não) Contava’

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