Filmes que refletiam o Brasil dos anos 1970
Fernanda Pessoa fala de seu longa, que abre o baú da pornochanchada
Mulheres empoderadas estão fundando novamente o cinema brasileiro. Você olha para Gabriela Amaral Almeida e talvez tenha dificuldade de imaginar que a jovem de olhar doce seja a diretora responsável pelo banho de sangue de O Animal Cordial. Só por segurança, mantenha as facas longe dela. E Fernanda Pessoa? Não é que seja uma freirinha, mas tem jeito de tímida. Fernanda escancara o baú da pornochanchada e retoma todas aquelas histórias que o nosso cinema (não) contava. O não entre parêntese é fundamental. Contava, mas todo mundo fingia
que não. De onde vem esse interesse de uma moça de boa família pelo sexo escrachado?
Fernanda conta – “Sou formada pela FAAP e fui estagiária no acervo de fotografias do cinema brasileiro. Catalogava fotos, e havia aquele monte de fotos de pornochanchada sem identificação. Comecei a ver os filmes para tentar identificar e catalogar. E descobri um material riquíssimo. O olhar de hoje me permitiu criar o distanciamento e ver que aqueles filmes malditos, muitas vezes desprezados pela crítica, estavam conseguindo colocar questões políticas e sociais que os outros filmes tinham dificuldade de abordar.
Machismo, tortura, racismo, objetalização da mulher e seu oposto, o empoderamento, está tudo na pornochanchada, claro que de uma forma caótica. E assim como organizei as fotos, achei que seria interessante organizar os próprios filmes. Foi o que fiz”.
Para isso, ela admite que precisou se livrar do preconceito – “São filmes que, na perspectiva de hoje, tem visões supercom-plicadas das mulheres e, ao mesmo tempo, assimilam as questões políticas essenciais dos anos 1970. E aí foi preciso todo um resgate, porque são filmes pouco vistos, pouco preservados.” A iniciativa está funcionando,
porque, na crise geral que assola o cinema brasileiro – nem Benzinho nem O Animal Cordial, elogiadíssimos pela crítica, estão levando muito público às salas –, Histórias Que Nosso Cinema (Não) Contava não apenas se manterá em cartaz por mais uma semana como ganha mais uma sala em São Paulo e outra no Rio.
Fernanda desmonta o mito de que esses filmes não eram censurados – “Eram censurados por motivos de ordem moral, não política. Encontrei vários documentos que listam a exigências de cortes ou então mostram como produtores e diretores lutavam com a burocracia
pela liberação das obras.” Mas o aspecto mais gritante talvez seja a representação do corpo feminino como moeda de troca. “É muito comum o homem oferecer dinheiro ou qualquer outra operação financeira para ter acesso ao corpo da mulher. Também encontrei uma
outra coisa muito interessante, que é a analogia com as obras da ditadura militar, tipo a Transamazônica ou a Ponte Rio-Niterói. O corpo feminino vira metáfora desse projeto de Brasil grande dos militares, o que me parece tanto mais surpreendente, porque o regime buscava uma santificação da mulher para servir à pátria.”
Fernanda diz que Histórias... já nasceu com o propósito de ser um filme de montagem. “Cheguei a 30 títulos na minha pesquisa, mas pude usar só 27, por causa de direito e também de falta de condições técnicas. Quando fiz meu mestrado na França, estudei a reutilização de imagens pelo cinema experimental e comecei a ver filmes que utilizavam o trabalho de outras pessoas para ressignificar alguma coisa. Ficou claro para mim que era o que queria fazer com as pornochanchadas”, diz.
“E, quanto mais montava (com Luiz Cruz), mais me dava conta da atualidade desse projeto. O machismo, o racismo, o preconceito. As mulheres negras são mais sexys que as brancas e quase sempre são domésticas, como se ainda se mantivesse a relação entre casa grande e senzala. A homofobia também não mudou nada – o gay é ridicularizado, motivo de riso. O comunismo é um perigo. Houve momentos em que eu me perguntava – ‘Estamos voltando a isso ou nada mudou?’. Passaram-se 40 anos e a história que esses filmes (não) contavam é a da nossa contemporaneidade.”
“Aqueles filmes malditos, muitas vezes desprezados pela crítica, estavam conseguindo colocar questões políticas e sociais” Fernanda Pessoa, DIRETORA