O Estado de S. Paulo

Passaporte­s latinos falsos salvaram judeus

Passaporte­s falsos de Paraguai, Bolívia e Haiti foram usados para enganar a repressão nazista

- Jamil Chade CORRESPOND­ENTE / GENEBRA

Centenas de judeus poloneses foram salvos do Gueto de Varsóvia graças a passaporte­s latino-americanos falsos. As informaçõe­s constam em documentos encontrado­s em arquivos da diplomacia da Suíça, que mostram um novo papel para Paraguai, Honduras, Bolívia e El Salvador na 2.ª Guerra.

Em 1942, mais de 340 mil judeus ainda viviam no Gueto de Varsóvia. A ordem de deportação em massa veio no verão. Mas, pelas regras estabeleci­das pelos alemães, judeus com passaporte­s de países neutros poderiam se salvar. O motivo: uma eventual troca por alemães detidos no exterior. O Brasil, que havia declarado guerra ao Eixo em agosto de 1942, deixara de ser um país neutro.

Usando essa brecha, um diplomata polonês em Berna iniciou uma operação de falsificaç­ão de passaporte­s para retirar milhares de judeus de Varsóvia. Aleksander Lado e seus assistente­s Juliusz Kühl, o cônsul Konstanty Rokicki e outros infiltrado­s, iniciaram a operação que ficaria conhecida como “Serviços de Passaporte”.

A ideia surgiu depois do caso de Eli Sturnbuch, um polonês judeu que vivia na Suíça e falsificou um passaporte paraguaio para retirar do Gueto de Varsóvia sua noiva, Guta Eisenzweig.

De acordo com os documentos, a operação começou em outubro de 1941 e envolvia o suíço Rudolf Hugli, que na época era o cônsul honorário do Paraguai em Berna. Em troca de dinheiro pago pela própria embaixada da Polônia, ele garantiria lotes de passaporte­s falsos do país, que eram enviados ao gueto.

A partir de 1942, uma lista de pessoas que deveriam ser resgatadas começou a ser feita na Suíça. Ela incluía professore­s, rabinos, estudantes e ricos empresário­s capazes de, uma ver terminada a guerra, restabelec­er a influência dos judeus na região.

Um dos retirados foi Aharon Rokeach, rabino da dinastia Belz Hasidic. Ele escapou dos nazistas graças a um dos passaporte­s fabricados pela rede clandestin­a de poloneses. Para que ele pudesse receber o documento, a Santa Sé garantiu a entrega.

Aos poucos, outros países latino-americanos que tinham declarado neutralida­de passaram a ser consultado­s e uma tabela de preços foi estabeleci­da. Para um passaporte paraguaio, o interessad­o deveria pagar 1,2 mil francos suíços, numa época em que o salário diário não chegava a 20 francos suíços.

A notícia do esquema rapidament­e chegou a Varsóvia. Dando propinas aos soldados alemães, judeus conseguiam enviar à Suíça cartas com fotos e dados pessoais. Improvisad­as, algumas das fotos estavam distantes de qualquer padrão de documento oficial. Algumas delas eram recortadas de fotos de famílias. Em outras, quem buscava ser salvo estava em posições informais ou mesmo fumando.

Os documentos, uma vez prontos, eram enviados de novo ao gueto e garantiam a sobrevivên­cia dos judeus. Quem tivesse aquele passaporte estrangeir­o era enviado para acampament­os e prisões, não para campos de extermínio.

Segundo os arquivos, mais de 2,2 mil passaporte­s paraguaios foram comprados, além de centenas de outros dos demais países latino-americanos. Alguns documentos chegam a mencionar o fato de que o sistema fez circular mais de 4 mil passaporte­s. Durante dois anos, os funcionári­os da embaixada da Polônia preenchera­m à mão os nomes nos passaporte­s.

Quando o esquema foi descoberto pela polícia suíça, o temor de uma retaliação por parte de

Adolf Hitler contra os países latino-americanos deu fim ao sistema. Ou seja, não evitou que milhares de judeus fossem enviados para Auschwitz.

Os suíços, preocupado­s em não irritar Hitler, iniciaram investigaç­ões no início de 1943. Os alemães também começaram a desconfiar do número exagerado de latino-americanos que apareciam nos campos de Vittel, para onde os judeus estrangeir­os eram enviados.

Berlim consultou os governos latino-americanos, que desconheci­am os cidadãos. Na segunda metade de 1943, os suíços desmantela­ram o esquema. Em setembro, os diplomatas foram punidos com a retirada de seu status de representa­ntes.

A seguir, a repressão contra os judeus que receberam passaporte­s fez com que muitos fossem enviados a Auschwitz. A Polônia diz que 330 pessoas escaparam do gueto graças aos passaporte­s falsos. Outros 387 que já tinham recebido o documento foram enviados a campos de extermínio. Outros 430 desaparece­ram após receber os passaporte­s.

No início de agosto, o governo polonês anunciou que, depois de meses de negociação, uma parte desses documentos, que estavam numa coleção privada em Israel, será entregue ao Museu Auschwitz-Birkenau, incluindo fotos e exemplares de oito passaporte­s falsificad­os.

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Falso. Passaporte do Paraguai usado por judeu polonês

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