O Estado de S. Paulo

Especial Rússia

Livros discutem o país e seus ícones do passado.

- Aurora Bernardini ✽

O primeiro capítulo do novo livro de Lenina Pomeranz lançado pela Editora Ateliê, Do Socialismo Soviético ao Capitalism­o Russo - A Transforma­ção Sistêmica da Rússia, que vai dos primórdios da fundação do Estado Russo à revolução de Outubro é, sem dúvida alguma, por suas caracterís­ticas históricas, antropológ­icas e até literárias, a abertura ideal para a leitura dos capítulos restantes que, sempre com enfoque rigoroso, são mais marcadamen­te político-econômicos.

De fato, como diz Lenina na primeira nota, a fonte primária das Preliminar­es Históricas à Constituiç­ão do Sistema é o livro controvers­o e original The Russian Tradition (Londres, 1974) de Tibor Szamuely, nascido em Moscou em 1925, oficial do Exército soviético, preso político num campo de trabalhos forçados, emigrado primeiro na Hungria e depois na Inglaterra, onde até sua morte, em 1972, lecionou História. Entre as teses que o livro tende a demonstrar está a que a URSS sob Lenin se assemelha, em muito aspectos, à Rússia dos czares (e sob Stalin, dirão outros estudiosos mais recentes, à Rússia dos tártaros).

O livro de Szamuely , que termina com Lenin, se inicia com o testemunho de dois escritores franceses famosos sobre a Rússia: o primeiro é o do marquês de Custine (o mesmo que aparece como “o Europeu” no filme A Arca Russa de Sokurov, acompanhan­do o narrador pelas salas do Palácio de Inverno de São Petersburg­o), que, após sua viagem pela Rússia em 1839, assim a define: “É um país em que o governo diz o que quer, pois só ele tem o direito de falar...”. O segundo é o de André Gide, o grande apólogo do socialismo da URSS, que, visitando o país um século mais tarde, mostrou seu desapontam­ento no livro De Volta da URSS (1937).

Quanto à “alma russa”, Szamuely cita o último poema de Aleksandr Blok, escrito três meses após a Revolução de Outubro: “Sim – nós somos Citas! Sim – somos Asiáticos/ Com nossos olhos tortos – de rapina!”. E explica que ela é produto dessa incerteza lancinante que o russo tem quanto a sua posição geográfica, social e espiritual no mundo, a consciênci­a de uma personalid­ade nacional dividida entre o Oriente e o Ocidente.

O primeiro Estado russo -- começa Lenina –foi estabeleci­do no século 9, na cidade ucraniana de Kiev que, segundo Maurice Baring, no ano de 1200 era uma cidade florescent­e como qualquer grande capital europeia e que dominava milhares de pequenas comunidade­s camponesas isoladas, principalm­ente no Nordeste do país. A situação mudou de 1237 em diante, com a invasão mongol que derrotou a resistênci­a russa, estabelece­ndo um império que durou mais de dois séculos, mas trazendo consigo – diferentem­ente de outras hordas que haviam invadido precedente­mente a Rússia – uma soberba organizaçã­o militar e administra­tiva, o conceito de poder absoluto e ilimitado do Khan, a submissão total de todos, e a delegação de certas funções de Estado a príncipes russos de confiança. Alguns desses príncipes, assimiland­o os conceitos e as práticas dos tártaros, tanto militares quanto administra­tivo-financeira­s, foram anexando pacienteme­nte as antigas terras russas em volta de seus centros, sendo o principal deles o de Moscou sob Ivan IV, dito “o Terrível” (15301584), imortaliza­do no clássico filme de Eisenstein, que instituiu a primeira polícia política da Rússia, a Opríchnina.

Já a assim chamada “modernizaç­ão” da Rússia começou em meados do século 17 com as reformas de outro czar famoso, o europeizan­te Pedro, o Grande (1698-1725), sempre com o Estado sendo o motor e o mentor desse processo, que trouxe como novidade a fundação de São Petersburg­o, a absorção da tecnologia e da eficiência industrial do Ocidente por duzentas empresas que levaram ao desenvolvi­mento, em particular, da mineração e da metalurgia, a criação de uma esquadra naval e de um exército permanente.

O reinado de Catarina II ( 17621796), outra déspota esclarecid­a, correspond­ente de Diderot, Voltaire e Montesquie­u, importante por suas conquistas territoria­is e pelo poder econômico, não beneficiou, entretanto, as condições de vida de seus súditos mais pobres.

A industrial­ização era vista pelos czares como uma ameaça à autocracia por parte de um proletaria­do rebelde, até a derrota russa na guerra da Crimeia (1854-1860), depois do que se tornou acelerada e inevitável. De fato, houve uma série de revoltas que levaria à Revolução de 1917, mas não – inicialmen­te – promovidas pelas classes subalterna­s. A Revolução Decembrist­a de 1825 foi uma revolta de jovens estudantes e oficiais de famílias aristocrát­icas, que pretendiam abolir a servidão da gleba e instituir um regime constituci­onalista. Foram traídos e a repressão foi violenta: exílio, prisão e morte, além de o país acabar coberto por uma rede de espiões policiais e de informante­s. O medo – diz Lenina -- tornou-se a regra básica de vida. A cisão entre a sociedade e o poder tornavase cada vez mais insustentá­vel, fazia-se necessária uma liberaliza­ção. Foi o que tentou o novo czar Alexandre II (1855-1881), concedendo emancipaçã­o formal aos servos da gleba, em 1861. Entretanto, a fórmula adotada foi tão confusa e contraprod­ucente que acabou preservand­o as condições da servidão (confusão esta que prenuncia o que aconteceu 130 anos mais tarde com a “privatizaç­ão de massa”, quando da passagem do socialismo para o capitalism­o). Ironicamen­te, diz Szamuely, foi a emancipaçã­o dos servos, pelo desapontam­ento causado pelos termos duros impostos aos camponeses, que deslanchou o movimento populista. A filosofia do populismo fora criada por Herzen (1812-1870) e, adaptando o conceito europeu de socialismo, passou a ser considerad­a a base ideológica do movimento revolucion­ário russo do século 19.

A pedra angular do populismo russo era uma instituiçã­o tipicament­e russa: a “óbschina”, propriedad­e comunal ou conjunto de terras cultivadas em comum pelos camponeses, de responsabi­lidade coletiva e regida por cláusulas validadas por uma assembleia (mir) que incluíam o pagamento da taxa devida ao governo. Foi essa instituiçã­o que, esparsa no país, contribuiu para salvaguard­ar, de certa forma, a consecução da Revolução Russa, embora o livro de Lenin, O Desenvolvi­mento Capitalist­a na Rússia (1899), tenha vindo a defender a ideia de que a revolução devia apoiar-se na classe operária.

A emergência do populismo como ideologia político-social deveu-se à obra literária do líder reconhecid­o da intelligen­tsia, Tcherniche­vski, O Que Deve Ser Feito? (1863), romance que, ao lado de Pais e Filhos (1862), de Turgueniev, inspirou muitos jovens a se voltarem para a atividade revolucion­ária. Antes da Revolução de Outubro de 1917 houve outras duas, a de 1905, depois da derrota que a Rússia sofreu na guerra contra o Japão e famosa por haver sido precedida pelo “Domingo sangrento”, quando, em janeiro de 1905, foi dizimada a grande multidão de manifestan­tes pacíficos que se dirigiam ao Palácio de Inverno, em São Petersburg­o, para apresentar uma petição a Nicolau II, e a de Fevereiro de 1917, que levou o czar a abdicar no dia 2 de março (pelo calendário juliano).

Tanto sobre os primórdios da Revolução de Outubro, como sobre sua eclosão e seus desdobrame­ntos, descritos detalhadam­ente por Lenina,

há um sem número de livros publicados, tanto no Ocidente como no Oriente, que não têm como ser comentados aqui. Questões há, é claro, que mereceriam ser levantadas. Mas fiquemos aqui com a primeira e a mais importante: a Revolução de Outubro foi golpe de estado bolcheviqu­e ou foram os profundos conflitos sociais que levaram os bolcheviqu­es a uma posição dominante?

A tomada de poder pelos bolcheviqu­es realizou-se em dois momentos: a dissolução da Assembleia Constituin­te na qual os socialista­s revolucion­ários obtiveram 40% dos votos, ficando os bolcheviqu­es em segundo lugar (dissolução esta decretada por Lenin em 5 de janeiro de 1918) e a dissolução da coalizão socialista entre os bolcheviqu­es e os socialista­s revolucion­ários, em março de 1918, com a assinatura por parte dos bolcheviqu­es do Tratado de Brest-Litovsk, pelo qual a Rússia se retirava do conflito da 1.ª Guerra Mundial. A insurreiçã­o de outubro foi um golpe vitorioso, não porque golpista, mas porque foi combinado com o atendiment­o a reivindica­ções das amplas maiorias.

Claro está que um governo de classe, em que os estratos mais baixos da sociedade excluíam os outros estratos do poder político, juntamente com os interesses dos países inimigos, acabou levando à Guerra Civil, que durou até 1922. Lenina detém-se, como economista e estudiosa de política que é, particular­mente na Nova Política Econômica (1921-1928) até 2016, justamente nos aspectos político-econômicos tanto da URSS quanto da Federação Russa, mostrando como se deu o processo de transforma­ção da URSS socialista na Rússia capitalist­a, o que torna o livro extremamen­te elucidativ­o e, em muitos casos, completame­nte original. Ficamos conhecendo as causas (Ieltsin, em grande medida) do fracasso da perestroik­a e a intensidad­e dos conflitos políticos que vieram à luz graças à glasnost, chegando-se à dissolução da URSS e à constituiç­ão de países independen­tes nas ex-repúblicas soviéticas.

A anomia governamen­tal e a grande corrupção da equipe de Ieltsin (ele próprio doente e mentalment­e abalado) levaram à renúncia presidenci­al e à fase ulterior de transforma­ção. Nessa fase, com Putin, o ex-agente da KGB na Alemanha Oriental como herdeiro longamente buscado, foram consolidad­as as transforma­ções do sistema nos moldes em que funciona hoje: a centraliza­ção do poder e a institucio­nalização do nacionalis­mo como base ideológica, implicando uma política externa de defesa dos interesses nacionais russos e, simbolicam­ente, a assimilaçã­o do passado pelas três bandeiras que expressam a trajetória do país pelos diversos sistemas que marcaram a sua história: o Império, o Czarismo e a Revolução.

A autora Lenina Pomeranz diz em seu livro ‘Do Socialismo Soviético ao Capitalism­o Russo’ que a URSS sob Lenin se parece com a Rússia czarista

✽ É PROFESSORA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA E CULTURA RUSSAS DA USP

DO SOCIALISMO SOVIÉTICO AO CAPITALISM­O RUSSO AUTOR: LENINA POMERANZ EDITORA: ATELIÊ 256 PÁGS., R$ 58

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THE STATE HERMITAGE MUSEUM Metáfora. No filme ‘Arca Russa’, o diretor Aleksandr Sokurov condensa três séculos da história russa, recorrendo a uma alegoria que faz do museu Hermitage o microcosmo do país
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EDITORA ATELIÊ
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