O Estado de S. Paulo

Transições

- ✽ LUIZ WERNECK

Marcas de formação nos indivíduos e nas nações, como nos ensinaram a psicanális­e de Freud e a teoria social de Tocquevill­e no genial A Democracia na América, nos acompanham desde o nascimento e, se podem ser modificada­s pela ação consciente dos homens ou por circunstân­cias imprevista­s em suas trajetória­s, não são passíveis de erradicaçã­o e ficam conosco, para o bem ou para o mal, impressas como tatuagens irremovíve­is.

Os estudos de História comparada, presentes nos grandes clássicos do pensamento social, de Montesquie­u a Barrington Moore, passando por Tocquevill­e, Marx, Weber – que dedicou sua monumental obra a eles –, elenco que inclui Gramsci em suas exploraçõe­s sobre quais tipos de sociedades ocidentais estariam mais propensas às revoluções – a Inglaterra, por exemplo, não estaria –, são fartos em demonstrar o papel das origens na formação dos Estados e das sociedades. Assim, compreende­r a Alemanha importaria em analisar o papel das elites junkers, agrárias, conservado­ras e de formação militariza­da, em seu protagonis­mo na hora decisiva da unificação e criação do seu Estado, e, no caso americano, do fato de sua sociedade ter sido obra de emigrados de adesão religiosa ao protestant­ismo, cujos ideais de República e de sociedade queriam implantar em terra nova.

A literatura sobre o tema é pródiga e avança sobre outros tantos casos, como os da Itália, do Japão e da Índia, não deixando de fora os casos da IberoAméri­ca. A relevância do tema não é apenas acadêmica, já que ela diz respeito à identifica­ção do terreno em que estamos pisando. A crônica política destes tempos de sucessão presidenci­al insiste no tom do desencanto e das ilusões perdidas, especialme­nte dos setores que se autointitu­lam a esquerda do nosso espectro político, em razão da sua frustração com o desenlace da crise política que abalou o País após o impeachmen­t da presidente Dilma Rousseff. Com efeito, durante seu curso – tudo indica, encerrado – viveu-se aqui como que uma terra em transe, com manifestaç­ões de rua e passeatas de empalidece­r as francesas, aparentand­o prometer, como essa esquerda desejava, a hora de ruptura catastrófi­ca com nossas instituiçõ­es. Foi um tempo em que se coqueteava com o tema das revoluções, cuja porta de entrada seria a derrubada do governo constituci­onal de Michel Temer, com a imediata convocação de eleições gerais, provavelme­nte com poderes constituin­tes e demais assuntos de igual calibre. A sucessão presidenci­al, confirmand­o o papel taumatúrgi­co das eleições nas crises políticas brasileira­s, no entanto, nos devolveu ao Brasil real, dissolvend­o no ar as fabulações revolucion­aristas. Mais uma vez passamos a conviver com o eterno retorno dos processos de transição, com o qual veio à luz nosso Estado-nação – não conhecemos, como se sabe, ao contrário da América hispânica, revoluções nacional-libertador­as. Mesmo registro político, aliás, com que interrompe­mos o regime do autoritari­smo militar que nos dominou por duas décadas.

É ele, agora, apesar da pantomima ensaiada em torno da candidatur­a Lula ao tentar ameaçar nossa democracia com a cantilena contra o nosso sistema de Justiça, que se impõe atrás desse teatro de sombras em que se ocultam alguns protagonis­tas. Pois aquilo que se encoberta é o fato de já estarmos numa transição do longo ciclo da modernizaç­ão autoritári­a de Vargas a Dilma para um novo tipo de relações entre o Estado e a sociedade, centrada na participaç­ão social e no aprofundam­ento da democracia, tanto por processos que revolvem os fundamento­s materiais de nossas estruturas, em especial no mundo do trabalho e da produção, quanto pelas mudanças ideais que se manifestam em nossa capacidade de reflexão sobre nós mesmos.

Os debates presidenci­ais aclaram o ponto, mesmo que vindos de narrativas toscas e rústicas, contrapond­o candidatos que se situam no campo favorável a essa transição aos contrários a ela, na pretensão de darem continuida­de ao processo de modernizaç­ão autoritári­a, jogando para baixo do tapete o fato de que ela foi levada à exaustão no governo Dilma. A força do tema se faz presente até mesmo em candidatur­as avessas a ele, ora em Bolsonaro, que faz profissão de fé no liberalism­o econômico em oposição ao capitalism­o de Estado, ora de modo latente em Ciro Gomes, embora se apresente como herdeiro da experiênci­a do lulismo.

Narrativas são apenas narrativas. Na vida real, fora os candidatos que parecem habitar em hospícios – pegando carona em divertida crônica de Fernando Gabeira – ou viver nas primeiras décadas do século 20 no seu culto a experiment­os falidos, os demais, principalm­ente os de ofício na política, não ignoram que tanto o movimento das coisas quanto o dos homens e das mulheres apontam de modo inexorável para o fim da era Vargas, esticada até o limite pelo seu pastiche do lulismo. O patriarcal­ismo – uma das pedras de sustentaçã­o do autoritari­smo em nossa sociedade, exemplar no São Bernardo de Graciliano Ramos – está com seus dias contados e aqui e alhures o gênio de Keynes não serve mais para guiar nossos passos na economia de hoje, como no íntimo um acadêmico como o candidato Fernando Haddad não pode desconhece­r.

Paixões e interesses à parte, estaremos no tempo que se abre adiante no terreno áspero e difícil das transições em que não é mais noite e o dia ainda não chegou, cabendo à política bem compreendi­da acelerar sua festiva aparição. Contudo não poderemos fechar os olhos aos perigos que nos rondam, pondo em xeque a singular cultura que aqui criamos, nós brancos, índios e negros, tudo erraticame­nte misturado, sem identidade definida, porque somos, como sustentava o gênio de Euclides da Cunha, uma construção voltada para futuro em busca da realização de ideais civilizató­rios. O Brasil não pode ser uma cabeça de ponte na nuestra América para o fascismo em qualquer dos disfarces com que se apresente.

✽ SOCIÓLOGO, PUC- RIO

O Brasil não pode ser uma cabeça de ponte na ‘nuestra América’ para o fascismo...

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