SAI UMA NOVA EDIÇÃO DE ‘HUMILHADOS E OFENDIDOS’
O título do romance Humilhados e Ofendidos (1861), do russo Dostoievski (1821-1881), logo nos leva à legião de tipos combalidos e lúgubres que desponta na obra do autor desde a publicação de seu primeiro livro, o romance epistolar Gente Pobre (1846), ao longo do qual conhecemos as desventuras de Makar Diévuchkin, funcionário menor de uma repartição pública de São Petersburgo, e de sua vizinha, a injustiçada Varvara Alieksiêievna.
Se nos lembrarmos das agruras da família Marmieládov, em Crime e Castigo (1866), teremos em mente um pai alcoólatra que caminha junto à fronteira tênue (e sumamente dostoievskiana) entre o sadismo e a culpa, já que seu vício é mantido às custas da prostituição da filha Sônia. Quando o narrador-personagem Ivan Petrovitch de Humilhados e Ofendidos nos narra a situação de um velho esquálido, com o qual deparara em uma de suas andanças pela cidade, sentimos comiseração pelo pobre diabo relegado: “Mesmo antes desse encontro, sempre que cruzava com ele na confeitaria do Müller causava-me uma impressão dolorosa. As costas arqueadas, o rosto octogenário, de aspecto cadavérico, o casaco velho com as costuras rotas, o chapéu redondo de pelo menos vinte anos de uso, todo estropiado. (...) De fato, era meio estranho ver esse velho já com um pé na cova, sozinho, sem ninguém para cuidar dele, ainda mais que parecia um louco que fugira de seus vigilantes. Havia me impressionado também sua extraordinária magreza: ele quase não tinha carne; era como se não houvesse nada além da pele colada sobre os ossos. (...) Não havia muito tempo que começara a aparecer na confeitaria do Müller, sabe Deus de onde vinha, e sempre acompanhado de seu cachorro. Nenhum dos frequentadores da confeitaria jamais se propusera a falar com ele, e ele tampouco chegara a puxar conversa com alguém”.
Ocorre que, em Dostoievski, os sentimentos raramente são unívocos e inequívocos. É como se um parente mais jovem de Ivan Petrovitch, o ardoroso, mundano e potencial parricida Dmítri Karamazov, do romance Os Irmãos Karamazov (1880), nos dissesse que joio e trigo estão umbilicalmente Goeldi. Xilogravura do artista carioca, que ilustrou o livro ‘Humilhados e Ofendidos’ em 1941
enredados na arena da condição humana: “Deus e o diabo estão em luta, e o campo de batalha é o coração do homem”. É como se o homem do subsolo, (anti) herói de Memórias do Subsolo (1864), nos sussurrasse que é preciso escarafunchar a solidariedade para com os humilhados e ofendidos, a fim de que se possa descobrir, sob a comiseração, o regozijo da vítima com a própria flagelação: “O prazer provinha justamente da consciência demasiado viva que eu tinha da minha própria degradação; vinha da sensação que experimentava de ter chegado ao derradeiro limite; de sentir que, embora isso seja ruim, não pode ser de outro modo; de que não há outra saída. (...) Tenho, por exemplo, um terrível amorpróprio. Sou desconfiado e me ofendo com facilidade, como um corcunda ou um anão, mas, realmente, tive momentos tais que, se me acontecesse receber um bofetão, talvez até me alegrasse com o fato”.
Em dado momento de Humilhados e Ofendidos, Ivan Petrovitch nos narra um imbróglio encarniçado envolvendo o príncipe Piotr Valkovski, seu filho Aliocha, Nikolai Sergueievitch, administrador de sua propriedade rural, e a jovem Natacha, filha de Nikolai. Funcionário correto e diligente, Nikolai havia sido acusado injustamente, a nos fiarmos na dubiedade de Ivan Petrovitch, de malversação dos recursos da propriedade de Valkovski. À acusação de apropriação indébita, o príncipe arremessa contra Nikolai a pecha de alcoviteiro, já que Nikolai, qual um cafetão da própria filha, teria incitado Natacha a conquistar Aliocha.
Ocorre que, em determinado momento, Ivan Petrovitch nos revela que Aliocha falara para o próprio Nikolai “a respeito de uma certa condessa, por quem tanto ele quanto o pai haviam arrastado asas ao mesmo tempo, mas que ele, Aliocha, levara vantagem, e por isso o pai ficara terrivelmente zangado com ele. Aliocha sempre contava essa história com entusiasmo, com uma simplicidade infantil e um riso alegre e sonoro – mas Nikolai Sergueivitch imediatamente o interrompia”.
Diante de tais confidências incestuosas, deveríamos ficar surpresos com o regozijo que os humilhados e ofendidos sentem pela própria flagelação? Deveríamos nos espantar com o fato de que Natacha pretende se casar com Aliocha, ainda que o filho mulherengo de Valkovski diga com todas as letras à filha de Nikolai que só quer tê-la como amante/reserva de sua relação titular com a tal condessa endinheirada? Ao fim e ao cabo, deveríamos nos espantar com o caráter lacaiesco de Ivan Petrovitch, para quem a suma conquista seria arrebatar o coração de Natacha e se tornar amante da concubina de Aliocha – e, quiçá, do príncipe Valkovski?
Publicado em 1861, romance logo nos leva à legião de tipos combalidos e lúgubres que povoam a obra do autor desde o seu primeiro livro, de 1846