O Estado de S. Paulo

ATRÁS DO RASTRO DE MOLOTOV

- Flávio Riardo Vassoler ✽

Em A Lanterna Mágica de Molotov (Editora Todavia), a jornalista e professora de estudos eslavos da Universida­de de Cambridge Rachel Polonsky nos conduz a uma travessia nômade e bibliófila pela história da Rússia: “Seguro a alça de bronze da lanterna e entrevejo senhoras em antiquados trajes de banho com as mãos em pala, protegendo os olhos do sol diante de um rochedo no litoral da Crimeia; uma roda de camponesas desliza em uma dança ritual, transforma­ndo-se em três imagens retocadas de casas de madeira e praças elegantes na cidade siberiana de Irkutsk”. É assim que, munidas da lanterna mágica e de um veloz tapete voador, as divagações de Polonsky nos levam de Múrmansk, cidade próxima da Finlândia e do mar de Barents, ao norte, à sulista (e ainda europeia) Rostov-sobre-o-Don, perto da fronteira com a Ucrânia; da capital Moscou, epicentro da Revolução de 1917, a Irkutsk, capital da Sibéria Oriental.

Tudo começa quando Polonsky, com um soslaio de sua lanterna mágica, nos teletransp­orta para o antigo apartament­o de ninguém mais, ninguém menos que o bolcheviqu­e Viatchesla­v

Molotov (1890-1986), representa­nte do ditador Stalin (1878-1953) para a assinatura do pacto de não agressão entre a Alemanha nazista e a União Soviética às vésperas da eclosão da Segunda Guerra Mundial, em 1939. À beira do colapso da URSS, no rigoroso inverno de 1990, a vastíssima biblioteca de Molotov, cúmplice/artífice de Stalin na política de fuzilament­os e expurgos totalitári­os, testemunha uma colocação tão espirituos­a quanto trágica do poeta Ossip Mandelstam (1891-1938): “A Rússia é o único país que leva a poesia realmente a sério, já que, aqui, é bem possível morrer por causa dela”. Vítima dos campos de trabalhos forçados, Mandelstam viu suas palavras se transforma­rem no prenúncio de sua própria lápide.

Chalamov. Com a capital russa como seu primeiro destino, A Lanterna Mágica de Molotov pretende narrar “a história das ruas de Moscou que ninguém escreverá”. Em diálogo com grandes escritores, como se a ficção fosse a antecâmara e o duplo da realidade, Polonsky lembra de Varlam Chalamov (1907-1982), sobreviven­te dos campos de escravidão siberianos: “Nós apenas gostávamos de relembrar Moscou juntos – suas ruas e monumentos, o rio Moscou coberto por uma fina camada de óleo, brilhando como madrepérol­a”.

Passeio a pé. Imersos em seus planos e projetos comezinhos e pequeninos, os pedestres moscovitas transitam por ruas, alamedas e avenidas a partir das quais a história do século 20 foi sendo moldada. Imaginem se Rachel Polonsky contasse ao vendedor de matrioshka – a boneca russa de madeira de cujo ventre novas bonequinha­s vão sendo paridas – que, “todos os dias, Stalin e Molotov percorriam as poucas centenas de metros até seus gabinetes no n.º 5 da Vozdvíjenk­a, saindo de seus apartament­os no Kremlin – sem guarda-costas, como Molotov lembraria com nostalgia. Em 1923, o Comitê Central mudou-se para a Staraia Ploschad, a Antiga Praça, do outro lado do Kremlin, próximo da Lubianka. Foi apenas no fim de 1930 que o Politburo, a partir de um relatório da polícia secreta, decidiu que ‘o camarada Stalin fosse imediatame­nte solicitado a cessar de andar a pé pela cidade’”.

Para aquém e para além da grande história, Moscou também assistiu à irrupção de arrebatada­s paixões. Em setembro de 1898, a atriz Olga Knipper (1868-1959), futura esposa de Anton Tchekhov (1860-1904), se encontrou com o escritor e dramaturgo pela primeira vez no clube de caça moscovita. A “lanterna mágica” de Polonsky se transforma em correio elegante para nos revelar as memórias amorosas de Knipper: “‘Nunca me esquecerei da excitação palpitante e ansiosa que tomou conta de mim quando me disseram que o grande dramaturgo assistiria ao nosso ensaio de A Gaivota, relembra a atriz, ‘nem do raro estado mental com que me encaminhei, naquele dia, para o clube de caça’. Foi ali, disse, que o ‘nó fino e emaranhado’ de sua vida ‘começou a enredar-se’”.

Nova Bizâncio. Ao fim, a “lanterna mágica” de Polonsky faz questão de desvelar as prestidigi­tações da Rússia contemporâ­nea para fazer com que a história polifônica e contraditó­ria do país culmine na democracia despótica de Vladimir Putin, 66. Após o colapso da União Soviética, a estátua do líder revolucion­ário Vladimir Lenin (1870-1924), em frente à biblioteca pública que ainda leva seu nome, nas imediações do Kremlin, foi substituíd­a por uma estátua do escritor Fiodor Dostoievsk­i (1821-1881). Polonsky então nos conta que, “recentemen­te, jovens adeptos de Vladimir Putin se reuniram aos pés da estátua em manifestaç­ões de lealdade produzidas para a TV. Dostoievsk­i passou a ser visto, lido e reverencia­do como um profeta cooptado pela ‘Nova Bizâncio’ de Putin”.

A jornalista Rachel Polonsky ilumina o leitor com o ensaio ‘A Lanterna Mágica de Molotov’, visão crítica e culta das ligações perigosas russas

 ?? TRUMAN LIBRARY ?? Encontro. Stalin, à esquerda, ao lado de Harry Truman (de terno cinza) e de Molotov (na extrema direita) em 1945
TRUMAN LIBRARY Encontro. Stalin, à esquerda, ao lado de Harry Truman (de terno cinza) e de Molotov (na extrema direita) em 1945
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ALEXEI DRUZHININ/ AP Putin. O temido presidente da nova Bizâncio
 ??  ?? A LANTERNA MÁGICA DE MOLOTOVAUT­ORA: RACHEL POLONSKY TRADUÇÃO: SERGIO MAURO SANTOS F.ºEDITORA: TODAVIA368 PÁGINASR$ 79,90
A LANTERNA MÁGICA DE MOLOTOVAUT­ORA: RACHEL POLONSKY TRADUÇÃO: SERGIO MAURO SANTOS F.ºEDITORA: TODAVIA368 PÁGINASR$ 79,90
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EDITORA TODAVIA

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