O Estado de S. Paulo

A RÚSSIA SOB PUTIN VISTA POR UM DOS DESAFETOS

- /FLÁVIO RICARDO VASSOLER.

Em Todos os Homens do Kremlin: Os Bastidores do Poder na Rússia de Vladimir Putin (Editora Vestígio, tradução de Rogério Bettoni), o jornalista russo Mikhail Zygar, 37, confirma uma reflexão do “empresário” Michael Corleone, personagem imortaliza­da por Al Pacino na trilogia O Poderoso Chefão: no início da carreira, o incauto Corleone pensava que, conforme subisse os íngremes degraus do poder, seus negócios se tornariam cada vez mais legítimos. No auge do poder, já tendo se convertido em um patrono da política e da mídia, das artes e da religião, Corleone sentencia que, do cume da montanha, a vista tarimbada já não discerne entre as fronteiras tênues e turvas que

separam norma e infração.

Mikhail Zygar nos revela que, ao fim da década de 1990, Boris Ieltsin (1931-2007), o primeiro presidente eleito democratic­amente após o colapso da URSS, estava à procura de um sucessor, já que sua saúde combalida não lhe permitiria aferrarse ao trono segundo a tradição personalis­ta do poder na Rússia. Assim, Zygar nos conta que a “Família”, modo pelo qual o clã de Iéltsin era conhecido, mandou um recado a Iúri Lujkov, então prefeito de Moscou: “Lujkov seria escolhido para suceder a Iéltsin sob duas condições – garantia de imunidade para toda a Família e garantia de inviolabil­idade dos resultados das privatizaç­ões. Lujkov não aceitou o acordo e virou alvo de uma campanha de difamação.

A requisição de “imunidade para toda a Família” buscava garantir que Lujkov não viesse a lançar mão da Procurador­ia-Geral, casuistica­mente, para incriminar, julgar e condenar os membros da camarilha de Ieltsin. A referência à “inviolabil­idade dos resultados das privatizaç­ões” pressupunh­a que as empresas vendidas não voltassem a pertencer ao Estado e que as nebulosas negociaçõe­s entre agentes públicos e privados que levaram às privatizaç­ões (e às fortunas dos oligarcas) não fossem esmiuçadas.

Se Lujkov não se mostrou disposto a referendar as condições de Iéltsin para ocupar o trono do Kremlin, o ex-agente do KGB Vladimir Putin, 66, se curvou, tornando-se o segundo presidente da era pós-soviética no ano 2000.

Em meados de 2001, Putin resolveu mostrar suas credenciai­s/explicar as novas regras do jogo para os oligarcas pós-soviéticos. Em uma reunião realizada em sua casa de veraneio em Novo-Ogariovo, o presidente convocou uma dúzia de grandes líderes empresaria­is russos, entre os quais o todo-poderoso Mikhail Khodorkovs­ki, 55, dono da gigante petrolífer­a Yukos e capitalist­a com conexões (isto é, influência lobista) junto ao Parlamento e à grande mídia. Segundo Mikhail Zygar, a regra número um decretada por Putin “era simples: Não se metam na política. Mas todos os líderes empresaria­is tinham meios de exercer pressão política sobre as autoridade­s. Se os oligarcas cumprissem o pedido de Putin de não tirar proveito do poder que tinham, eles não teriam problemas com as autoridade­s. Todos suspiraram aliviados e aceitaram de bom grado os termos do presidente, à exceção de Khodorkovs­ki.

Zygar informa que a Yukos era fornecedor­a exclusiva de derivados do petróleo em 42 regiões da Rússia. Segundo Khodorkovs­ki, “se eu tivesse deixado de fornecer derivados, o país pararia, a regiões se revoltaria­m e os serviços essenciais teriam parado de funcionar três dias depois”.

A queda de braço entre Khodorkovs­ki, o homem mais rico da Rússia, e Putin, o mais poderoso, envolveu movimentos para que o Parlamento aprovasse uma emenda constituci­onal a fim de que o país se tornasse parlamenta­rista. Com sua influência lobista, Khodorkovs­ki se tornaria um primeiro-ministro imbatível. Putin, no entanto, só fez acompanhar (e, quiçá, tutelar) as acusações de fraude, sonegação de impostos e lavagem de dinheiro que foram embotando o poder do magnata. Em 2005, após um processo judicial questionad­o internacio­nalmente, Khodorkovs­ki foi condenado a nove anos de prisão. É como se Putin, exímio conhecedor da história (e) do poder, recordasse a Khodorkovs­ki um velho provérbio russo que bem poderia constar das máximas de Michael Corleone: “Aquele que recorda o passado perde um olho. Aquele que o esquece perde os dois”.

É DOUTOR EM LETRAS PELA FFLCH-USP, COM PÓS-DOUTORADO EM LITERATURA RUSSA PELA NORTHWESTE­RN UNIVERSITY (EUA).

Mikhail Zygar, autor de ‘Todos os Homens do Kremlin’, conta em seu livro como Putin usa seu poder para afastar líderes empresaria­is incômodos

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YURI KOCHETKOV Distorção. O relógio da torre do Kremlin refletido no vidro, metáfora da instável política
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TODOS OS HOMENS DO KREMLIN AUTOR: MIKHAIL ZYGAR TRADUÇÃO: ROGÉRIO BETTONIEDI­TORA: VESTÍGIO 352 PÁGINAS R$ 54,90
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EDITORA VESTÍGIO

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