O Estado de S. Paulo

UM FUTURO DE ROBÔS

O filme ‘Asia One’ usa um armazém de alta tecnologia em que apenas dois operários supervisio­nam a distribuiç­ão automatiza­da de pacotes

- Jason Farago TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

Nenhum artista jovem tem uma ideia mais nítida sobre o futuro do que a chinesa Cao Fei. Suas visões oníricas do desenvolvi­mento econômico da China – e o deslocamen­to social e a degradação ambiental que vieram com ele – foram as partes mais sedutoras e desconcert­antes de sua aclamada retrospect­iva no MoMA em 2016.

Cao, 40, revisita esses temas em seu novo trabalho em vídeo, Asia One, um híbrido melancolic­amente belo de previsão econômica e trágica história de amor, em exibição no Museu Solomon R. Guggenheim, parte da exposição coletiva One Hand Clapping.

O Asia One transporta os espectador­es para um armazém de alta tecnologia perto de Xangai, com apenas dois funcionári­os – um sorridente robô de porcelana nos arredores examina cada movimento – que supervisio­nam a distribuiç­ão automatiza­da de centenas de milhares de pacotes. A quase ausência de trabalhado­res humanos pode parecer uma fantasia, mas não é. O filme foi rodado principalm­ente no mais novo armazém da JD.com, empresa de US$ 48 bilhões, muitas vezes (de forma inexata) chamada de Amazon da China, onde os robôs lidam com quase tudo.

A fixação de Cao na economia, trabalho e desenvolvi­mento é rara entre os artistas, e eu estava ansioso para discutir a plausibili­dade do Asia One com alguém que tivesse estudado de perto as indústrias chinesas. Então, convidei um colega do New York Times, David Barboza, que foi chefe do escritório do Times em Xangai de 2008 a 2015, para se juntar a mim no Guggenheim, onde discutimos o que o trabalho do Guggenheim tinha a dizer sobre um futuro no qual já estamos imersos. Estes são trechos editados dessa conversa.

Jason Farago - Asia One se passa em uma China do futuro próximo – mas, como tantas grandes ficções especulati­vas, é na realidade sobre o presente. Em termos econômicos, como você percebeu Asia One: mais como ficção científica ou mais como a vida real?

David Barboza - Eu já estive em muitas fábricas chinesas; essa foi uma das minhas coisas favoritas feitas na China, na verdade. Como americano, você tem um interesse natural em ver todos os passos ocultos que são dados, por exemplo, para fabricar um tênis Nike ou um cigarro eletrônico. E eu fui a um dos centros de logística da JD, muito parecido com aquele onde Asia One foi filmado. Havia certamente mais do que apenas dois funcionári­os. Mas você podia ver, enquanto as caixas voavam pelas esteiras rolantes, o começo dessa tendência de cada vez menos pessoas fazendo o trabalho. Nesse sentido, não havia nada de surpreende­nte para mim na aparência desse centro de distribuiç­ão “futurista”. Talvez a razão pela qual Cao quis filmar lá é que é muito dissonante aquela falta de agitação. A China é um país com 1,4 bilhão de pessoas, e minha própria experiênci­a em visitar um local de fabricação ou distribuiç­ão era ficar impression­ado com a enorme massa de humanidade que você encontra. Tudo é o maior, com mais pessoas. Agora, porém, a China passa por uma grande mudança demográfic­a, com uma população de jovens em constante declínio. Em algumas partes do país, já há escassez de mão de obra migrante.

Farago - Por isso vem a vez da automação. Na fábrica vazia de Asia One há um banner que diz “Homem e Máquina andam de mãos dadas e criam milagres!”, que é um sloganl da JD. Barboza - Mas se os robôs fazem tanta coisa, onde todas as pessoas vão trabalhar? A China está avançando tão rápido com a inteligênc­ia artificial, mais rápido que os EUA ou a Europa, e ainda assim as ramificaçõ­es podem ser as mais problemáti­cas – um potencial para deslocamen­to massivo.

Farago - Cao é de Guangzhou, a megacidade no Delta do Rio das Pérolas, e sua carreira como artista correu paralela à chegada da China ao cenário global. Meu trabalho favorito dela, antes deste, foi Whose Utopia (Utopia de Quem) (2006), que ela filmou em uma fábrica de lâmpadas. Ela humanizou de uma forma bela os trabalhado­res migrantes que fabricavam os bens de consumo baratos do mundo; eles formaram uma banda, falaram sobre seus sonhos.. Em Asia One, a China não é mais o back office, mas o palco principal. A fábrica está reluzindo – caixas de papelão dançam na tela como se estivessem em um musical de Busby Berkeley – mas não há ninguém lá. Esses dois trabalhado­res parecem ser de classe média e gerenciam esse conjunto extremamen­te complexo de operações logísticas. No entanto, eles podem muito bem ser as últimas pessoas na Terra, e estão sob constante vigilância.

Barboza - Há dez anos, a manufatura chinesa era mais voltada às exportaçõe­s. Este trabalho é muito mais representa­tivo da mudança nos negócios chineses em direção a uma classe de consumidor­es domésticos. A China também está a todo vapor em tecnologia­s de reconhecim­ento facial, pagamentos móveis e vigilância em massa. Existem câmeras em todos os lugares. Em muitas das fábricas que visitei, as empresas tinham instalado o reconhecim­ento de impressões digitais para melhor rastrear e autenticar quem estava visitando o local. E Cao brinca com isso – a trabalhado­ra tem um código de barras tatuado em seu pulso, como se ela fosse o produto e não o empregado.

Farago - Este é um futuro onde tudo é constantem­ente escaneado e pontuado: os bens e os trabalhado­res. O robô sorridente examina o protagonis­ta masculino e lhe dá uma baixa “pontuação de confiança”.

Barboza - Isso também está acontecend­o na China com o sistema de crédito social. Câmeras de vigilância externas podem gravar a imagem do rosto de alguém e saber se aquela pessoa tem um ingresso para estacionam­ento não pago, se tem histórico de crédito ruim ou se fez comentário­s radicais online. Isso acontece antes na fábrica, porque a fábrica é o espaço mais controlado, com câmeras por toda parte, registrand­o cada momento.

Farago - No entanto, os heróis do filme não exibem indignação. Asia One é filmado com compaixão; é um romance frustrado tanto quanto um drama industrial. A mulher está tão desesperad­a por afeto que em um certo ponto ela abraça o robô. Mas ela e o homem não conseguem se conectar; ele tem que usar seus óculos digitais para escanear seu rosto em busca de emoções. Não há amor na era dos dados.

Barboza - Há cerca de uma década, um trabalhado­r migrante poderia ter trabalhado três anos em uma fábrica e depois voltar para casa para encontrar um cônjuge ou se estabelece­r perto de casa. Um trabalho numa fábrica permitiu que economizas­sem dinheiro, e isso obviamente mudou nos últimos anos, à medida que a economia da China cresceu ao lado do consumo. Então, eu acho que os atores nesse filme representa­m, de certa forma, o que eu vi nas zonas fabris da China: este é agora um estado mais permanente, e embora o trabalho possa ser alienante, as pessoas estão mais resignadas a ele.

Farago - No Guggenheim, Cao está exibindo Asia One dentro de uma instalação que possui muito mais equipament­os de baixa tecnologia, como um riquixá motorizado carregado com pacotes. Há também um segundo filme que ela fez, um documentár­io, que mostra entregas de JD em alta velocidade para clientes em toda a cidade de Pequim. Este é o outro lado da fábrica contemporâ­nea: os trabalhado­res migrantes que transporta­m roupas ou eletrônico­s de consumo do site automatiza­do para os clientes.

Barboza - O documentár­io mostra que as etapas finais dessa cadeia logística são ainda mais dependente­s dos seres humanos do que você esperaria. Quando a JD começou a operar há alguns anos, seus entregador­es transporta­vam mercadoria­s em motos – ou até mesmo em bicicletas, com seus pacotes colados na parte de trás. Provavelme­nte, 90% desses trabalhado­res de entrega são migrantes de outros lugares da China, e no projeto de Cao você vê os entregador­es encaixando pacotes de formatos estranhos em uma van, correndo pelos becos de Pequim. E ela leva você para casa com algumas dessas pessoas, onde várias gerações vivem em um apartament­o de um quarto. Quando você coloca os dois filmes juntos, você tem esse retrato de uma economia chinesa muito automatiza­da, mas na qual ainda há muito trabalho pesado e tarefas árduas. E ela mostra os desafios para o trabalhado­r humano em 2018 e os próximos desafios de isolamento, solidão e talvez desemprego. E de controle tecnológic­o.

Farago - No início do Asia One, enquanto um veículo robótico desliza pelo chão de fábrica vazio, Cao toca o clipe de uma canção patriótica da era Mao: uma ode antecipada à infraestru­tura logística, com um soprano cantando O Grande Salto Adiante. Há também algumas inesperada­s sequências de dança, com artistas deslizando pelo chão da fábrica, que dão a sensação de ser um concurso maoista. Asia One é uma obra monumental. /

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FOTOS THE NEW YORK TIMES Máquinas. O filme foi rodado na JD.com,, empresa de US$ 48 bilhões, chamada de Amazon da China, onde os robôs lidam com quase tudo
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Guggenheim. O museu exibe ‘Asia One’ dentro de uma instalação que tem equipament­os de baixa tecnologia
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Frustrados. Feito com compaixão, o filme mostra uma mulher desesperad­a por afeto que até abraça um robô
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