COMO DEVE SER UMA FOTOGRAFIA JORNALÍSTICA?
No grupo dos vencedores do World Press Photo deste ano, o impacto visual parece ser mais importante que a história por trás da foto, que vira decoração
Como deve ser uma foto jornalística? No grupo dos vencedores do World Press Photo deste ano o impacto visual da imagem parece ser mais importante do que a história por trás dela. Em seu polêmico livro War is Beautiful (2015), David Shields visou o New York Times, afirmando que a cobertura fotográfica do jornal das guerras no Afeganistão e Iraque deixou-o “encantado e furioso”.
Segundo ele, muitas das fotos estetizavam a violência e distanciavam o leitor da realidade dos conflitos. “Parece que é parte da política institucional selecionar imagens que as pessoas podem colocar na parede da sua sala”, escreveu Shields. “A suposição é de que o jornalismo atormente os que estão numa situação cômoda e console os atormentados. O Times não contempla nenhum dos casos".
O papel do fotojornalista é documentar os acontecimentos e de uma maneira dramática; o New York Times não é o único a desejar publicar imagens que impressionam na sua página de capa. Testemunhar o fato e criar algo de valor estético não se excluem – e prova disto é o trabalho de Robert Capa e Tim Page – mas sempre existe certa tensão entre esse testemunho e a criação de uma imagem estética.
Esta tensão tem sido realçada pelo World Press Photo Awards, que, desde 1955, tem premiado fotos que contêm “um nível excepcional de percepção visual e criatividade” sobre um tema, uma situação ou evento de grande importância jornalística”. Anualmente as fotos vencedoras fazem parte de uma exposição, visitada por cerca de 4 milhões de pessoas em 100 cidades. Ampliadas e penduradas nas paredes das galerias, abstraídas das notícias que elas reforçaram, invariavelmente as fotos são vistas como arte. E parece cada vez mais que os fotógrafos vêm enfocando seu trabalho tendo isso em mente. Este ano, as fotos de Kevin Frayer dos refugiados Rohingya – como a de Joel Goodman de uma véspera de Ano Novo, em Manchester, em 2015 – podem muito bem ser comparadas a pinturas da Renascença.
Em branco e preto, uma delas mostra o dedo estendido de uma mulher sendo auxiliada a sair de um barco em Bangladesh. Com sua ênfase neste gesto particular e nos corpos das pessoas a imagem parece menos uma exploração das tentativas de limpeza étnica de Mianmar e mais uma obra de arte religiosa.
Do mesmo modo os retratos de Adam Ferguson das meninas na Nigéria que escaparam do grupo islâmico Boko Haram, que parecem mais apropriados para estar na parede de um colecionador do que nas páginas de um editorial. As meninas objeto da foto estão com véus, retratadas diante de cortinas iluminadas por trás que lembram as pinturas de Mark Rothko.
As imagens de Daniel Beltra do desmatamento na Amazônia, e particularmente sua maravilhosa foto dos íbis escarlate voando sobre as planícies inundadas são ao mesmo tempo elevadas e de algum modo reduzem o desastre ambiental a um expressionismo abstrato. As histórias por trás da imagem são ofuscadas pelo impacto visual das próprias imagens.
A obra vencedora deste ano ilustra um jovem em chamas no meio dos protestos contra o presidente Nicolás Maduro em Caracas, na Venezuela. Ronaldo Schemidt, fotógrafo local, capturou a imagem momentos antes de as chamas – provocadas pela explosão do motor de uma motocicleta – serem controladas (surpreendentemente, o jovem sobreviveu com queimaduras de primeiro e segundo graus). A agonia nos é transmitida com maestria técnica. A foto está perfeitamente enquadrada: atrás do homem envolto nas chamas vemos a imagem de uma arma apontando para um grafite com a palavra Paz. As cores são vibrantes e o foco é indefinido o bastante para dar à imagem um aspecto sobrenatural.
Mas como a foto foi tirada num momento particular da história venezuelana ela parece irrelevante. O jovem queimado, José Victor Salazar Balza, poderia ser o homem em chamas do famoso vídeo da banda Wax chamado Southern California e dirigido por Spike Jonze: anônimo, abstrato, um exemplo de estética pura. O talento de Schemidt, e na verdade do grupo de fotógrafos deste ano, não está em questão. Mas longe do jornal ou revista, a relação do espectador com seu trabalho é inevitavelmente alterada.
O que nos leva a uma série de questões relacionadas. O que exatamente procuram os juízes do World Press? O que os leitores desejam ou esperam das fotos de jornais? Se a resposta for arte, quais são as novas responsabilidades para os fotógrafos encarregados de transformar a notícia do dia nas imagens que produz? No mínimo, é preciso se chegar a um equilíbrio entre as funções concorrentes da foto jornalística, de um documentário ou um objeto artístico.
Não é impossível criar algo que seja ao mesmo tempo visualmente perceptivo e de grande importância jornalística. O trabalho de Ryan Kelly focado na manifestação da extrema direita, Unite the Right, em Charlottesville, Virgínia, em agosto, é testemunho disto. Em uma foto pungente, Kelly capturou o momento em que James Alex Fields Jr. investiu seu carro contra uma multidão de pessoas que protestava contra aquela manifestação, matando uma mulher, Heather Heyer, e ferindo 19 pessoas. A foto é incompreensível à primeira vista, capturando o caos e o terror daquele momento e não pode ser isolada do contexto da história. Não sabemos se ela não foi a vencedora do grande prêmio deste ano porque é menos polida esteticamente ou porque pode ser sido vista como uma espécie de vitória perversa da direita alternativa. (No ano passado houve controvérsias quando Burhan Ozbilici foi declarado vencedor pela sua foto mostrando o policial fora de serviço que assassinou Andrey Karlov, embaixador russo na Turquia, em uma galeria de arte em Ancara). Mas ela foi, contudo, uma vitória do fotojornalismo: o tipo de fotografia que assumiu os dois papéis e estaria um pouco fora de contexto se pendurada na parede de uma residência.