Lúcia Guimarães
A hostilidade a jornalistas é tão antiga quanto a profissão.
Ele tinha em casa dezenas de armas e centenas de munições. E prometeu aparecer na redação do jornal Boston Globe para matar os jornalistas. Numa das 14 ligações que fez com ameaças, repetiu o slogan do presidente que tanto admira – “inimigos do povo”. Robert Chain, de 68 anos, não chegou a comprar passagem para atravessar o país e cumprir sua ameaça até a quinta-feira passada, quando a polícia invadiu sua casa em Los Angeles e o levou para frente de um juiz pela acusação de um crime federal. Sua motivação, ele explicou nos telefonemas, fora a iniciativa do Globe, seguida por mais de 300 jornais americanos, de publicar editoriais defendendo a imprensa livre dos ataques do presidente. Sem passaporte e com as armas confiscadas, Chain, obteve habeas corpus e está livre para voltar ao passatempo de berrar quando assiste a notícias na TV.
No mesmo dia, o presidente voltou a chamar a imprensa de inimigos do povo, a expressão infame e usada para espalhar terror pelo ditador genocida Joseph Stalin, na primeira metade do século 20. Neste caso, o tuíte incluía uma vaga menção a livros, interpretada como um ataque preventivo ao novo livro de Bob Woodward, famoso pela cobertura do escândalo Watergate que forçou a renúncia de Richard Nixon, em 1974. O livro Fear: Trump in the White House (Medo: Trump na Casa Branca) sai no dia 11 de setembro, deve ser rico em vazamentos e promete ser mais uma colonoscopia como as que Woodward fez com outras presidências.
Em junho passado, Jerrod Ramos cumpriu sua ameaça contra outro jornal. Invadiu a redação do Capital Gazette, em Annapolis, Maryland e matou cinco pessoas. Ele tinha simpatia por extremistas de ultradireita. Um detalhe: Ramos nutria ódio a jornalistas há anos e, em 2011, a polícia não encontrou motivo para prendê-lo, quando ameaçou matar o então publisher do Gazette, Tom Marquardt. Qual a diferença entre 2011 e 2018?
Três semanas depois do massacre em Annapolis, o publisher do New York Times aceitou um convite do presidente para visitar a Casa Branca. Mais uma vez, o tuiteiro chefe mentiu sobre um diálogo que seria em off e descreveu o encontro como uma discussão sobre notícias falsas e “inimigos do povo.” Liberado pela divulgação do encontro, o publisher A.G. Sulzberger emitiu um enérgico desmentido, afirmando que aceitara o convite para dizer que a retórica anti-imprensa estava colocando em risco a vida de jornalistas, especialmente em autocracias no exterior.
Um mês depois, o repórter Ken Vogel, do bureau do New York Times na capital, ouviu a seguinte mensagem no seu telefone: “Vocês são o problema. Vocês são o inimigo do povo. E, embora a pena seja mais forte do que a espada, a pena não é mais forte do que uma AK-47,” em referência ao popular rifle de assalto russo.
A veterana repórter política negra April Ryan revelou que contratou segurança particular porque recebe ameaças de morte. “O presidente colocou um alvo na minha cabeça,” acusa Ryan.
Assim como o submundo da supremacia branca não nasceu na campanha presidencial que começou há três anos, a hostilidade a jornalistas é tão antiga quanto a profissão. A diferença é a normalização institucional do extremismo telegrafada da sede do poder e o que vemos em 2018 era facilmente previsível desde o início da campanha.
Como a internet é para sempre, não é difícil googlar os jornalistas brasileiros que festejaram o resultado da eleição americana de 2016 como uma derrota do esquerdismo, numa demonstração notável de ignorância e pusilanimidade. Hoje, os mesmos comentaristas disfarçam como quem, responsável pelo odor da flatulência no elevador, tenta não ser notado. Não devem ser esquecidos. Devem ser lembrados como inimigos da liberdade de expressão.
A veterana repórter política negra April Ryan revelou que contratou segurança particular